Há um poema do Manuel António Pina, "Como se desenha uma casa", no qual, mais ou menos a meio, se escreve: "no papel de parede, agitam-se as recordações". É o verso de que me lembro imediatamente quando abro o livro Eu Acredito, com texto do David Machado e desenhos do Alex Gozblau (ed. Alfaguara).
Por ser aqui recorrente um papel de parede; melhor: um papel de parede e um tom — na capa, nas guardas, nas ilustrações. Tão presentes quanto o menino ruivo e o seu gato preto. Presentes ou ausentes: há aqui um jogo que, se nos remete de imediato para o futuro através do modo como se explora tematicamente o título ou o mote do livro, segue também algumas "regras" do passado, isto é, do que dele a memória pode preservar. Isso consegue-se sobretudo pelo modo como o Alex desenhou este Eu Acredito: repare-se na roupa do menino, na mobília do quarto dele, no candeeiro de rua e nas casas, no livro sobre o universo que o menino fita a páginas tantas, nos quadros e nas molduras penduradas nas paredes... Olho-os e revisito coisas que já não existem e que melancolicamente gostava que continuassem a existir.
E nada me convence de que este gato, a figura que mais intrigou o meu filho, não é o símbolo máximo dessa ausência. Daquilo que tende a apagar-se. Por muito que acreditemos (ou queiramos acreditar) no infinito. Por muito que, como na infância, o multipliquemos por mil ("infinitos mil": quem não se lembra de acreditar nisso?...).
E nada me convence de que este gato, a figura que mais intrigou o meu filho, não é o símbolo máximo dessa ausência. Daquilo que tende a apagar-se. Por muito que acreditemos (ou queiramos acreditar) no infinito. Por muito que, como na infância, o multipliquemos por mil ("infinitos mil": quem não se lembra de acreditar nisso?...).
Ora, o menino ruivo é, com efeito, um menino. Não um infans (ele já tem algumas palavras nos bolsos...), mas um menino no centro do lugar infinito e sem fronteiras (geográficas e temporais) que pode ser a infância. Ao longo do livro, vai enumerando aquilo em que acredita, aquilo com que, suspeito, desenvolveu, antes da crença, uma relação de espanto: ele acredita, por exemplo, que se sonha ininterruptamente e acredita que se pode mergulhar na palavra água (e eu aqui mergulhei no jogo intertextual com O Limpa-Palavras, do Álvaro Magalhães: "Limpo palavras. / (...) Trato delas durante o dia / enquanto sonho acordado. / A palavra solidão faz-me companhia.")
E acredita que as árvores se espreguiçam quando ninguém está a ver ou que a sua voz só deixará de se ouvir muito tempo depois de morrer. E acredita que os fantasmas também acreditam que ele é um fantasma. E acredita que os carneiros, para adormecer, contam pessoas. E acredita, e acredita. Em tempos de rasura da fé, de queda em desuso da fé, e/ou da sua instrumentalização, é bom que exista quem regresse ao lugar onde tudo pode recomeçar, coincidir, repetindo, como numa oração, aquilo em que, mais do que realmente acreditar, se deseja acreditar. E continuar a acreditar. Essa persistência é o exercício de fé deste livro, que, sublinho, incessantemente repetindo, reforça, mas também altera. Como um eco. Confesso que tenho um fraco por livros de estrutura repetitiva (um dia, apresentarei a minha "malabarista que chorava nos lançamentos" e que é também tempo passado e futuro) por detectar neles uma espécie de amplificação dos sentidos e do modo como nos autorizam a fitar o mundo, distorcendo-o ("Eu acredito que, num dia de muita chuva, os peixes podem nadar até às nuvens", p. 24).
E acredita que as árvores se espreguiçam quando ninguém está a ver ou que a sua voz só deixará de se ouvir muito tempo depois de morrer. E acredita que os fantasmas também acreditam que ele é um fantasma. E acredita que os carneiros, para adormecer, contam pessoas. E acredita, e acredita. Em tempos de rasura da fé, de queda em desuso da fé, e/ou da sua instrumentalização, é bom que exista quem regresse ao lugar onde tudo pode recomeçar, coincidir, repetindo, como numa oração, aquilo em que, mais do que realmente acreditar, se deseja acreditar. E continuar a acreditar. Essa persistência é o exercício de fé deste livro, que, sublinho, incessantemente repetindo, reforça, mas também altera. Como um eco. Confesso que tenho um fraco por livros de estrutura repetitiva (um dia, apresentarei a minha "malabarista que chorava nos lançamentos" e que é também tempo passado e futuro) por detectar neles uma espécie de amplificação dos sentidos e do modo como nos autorizam a fitar o mundo, distorcendo-o ("Eu acredito que, num dia de muita chuva, os peixes podem nadar até às nuvens", p. 24).
Ampliam os sentidos também — e melhor — os desenhos do Alex Gozblau. Há uns meses, perguntaram-me como se processa e partilha a criação de um álbum ilustrado. Respondi que, para além de me parecer fundamental que ambos os autores, o do texto e o dos desenhos, se movam no território da imaginação, poucas coisas são tão boas quanto entregarmos as nossas palavras a alguém e recebê-las
de volta mais ricas, mais cheias de sentidos. Como se fossem
elásticas e infinitas. É neste ponto que, olhando para este volume, me ocorre outro verso do Pina: "o azul para os sonhos desfeitos". É o azul (a minha memória não larga o Pina, bem sei, mas está lá tudo: "O
azul é uma refracção na boca, nunca o tocarás") e a expressão do menino que lançam este livro para a intrigante zona do mistério, do enigma. Na infância, acreditamos, sim, mas somos também obcecados pelo "porquê?". Espantamo-nos porque tudo é uma primeira vez, e logo a seguir aproximamo-nos e questionamos o espanto. Se há privilégio da infância, é esse: o da eterna suspeita, o do tempo que podemos dedicar à dúvida.
Diante do azul (que nunca tocarei) e da expressão do menino (que me devolve a que, em tempos, espero também ter sido a minha diante das coisas do mundo), eu acredito, por exemplo, que este menino acredita que a palavra Universo tem letras escondidas, que ele suspeita disso e que insiste nessa suspeita (há quantas horas estará ele a fitar aquele livro antigo?). E é também diante deles, do azul e do menino, que me lembro de que, quando tinha 9, 10 anos, uma das minhas melhores amigas era de papel. Ainda hoje passo belos serões com a Mafalda. Este menino ruivo acredita, mas desconfia. Por isso, de agora em diante, pode muito bem tornar-se um dos meus amigos de papel. Acreditem. PIM!
Um belíssimo livro, fantasmagórico e delicado. De uma intemporalidade surpreendente.
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