quarta-feira, 13 de agosto de 2014

"Acende-se um nó na garganta."

"Acende-se um nó na garganta." Assim começa o livro Canto Onde, do meu bom amigo Luís Quintais (ed. Cotovia). Temos ambos filhos pequenos e, sobre eles, trocámos mensagens há uns dias. Numa delas, disse-me: "Não há nada mais bonito do que uma criança: isto é uma banalidade de base, mas é também a única evidência neste mundo onde nada é evidente e onde se lançam bombas para cima de crianças..." Acende-se um nó na garganta, sim.

Também por causa disso - dos luminosos nós - este blogue está em modo intermitente. Porque quem o escreve está em modo intermitente. Entre a possibilidade de espanto e a possibilidade do Horror, entre as conquistas da infância e as perdas da idade adulta. Tudo isto parece, pois, um conjunto de "banalidades de base", mas é um conjunto de evidências "neste mundo onde nada é evidente"... O M. continua, então, sem ver televisão - excepto as vitórias do Benfica. 





Conseguimos sabiamente evitar as derrotas. Desportivas. As outras sucedem-se, acumulam-se, "neste mundo onde nada é evidente", repito, re-cito: Gaza, Iraque, Rússia, Ucrânia, Novo Banco, Banco Mau... O M. desconhece esta linguagem. Sabe apenas uma dessas palavras: "mau". Por causa do lobo. Há dias, assumiu-se seu fã. Do Lobo Mau, sim. "O uôbo, Mãe, o uôbo mau?" e a expressão de quem intui que "há sempre qualquer coisa que está para acontecer". Logo agora tinha que vir um banco usurpar adjectivos.


Banco mau, mãe?! A sério? Então não era um lobo?

Surge então o humor. Se não salva, abre caminhos. Na floresta preferida do Lobo Mau, onde também não se vislumbram evidências. Cá em casa, nunca aprendemos, no entanto, a rir do que se passa no resto do mundo. Temos apenas recursos. Como a curta de animação This Land Is Mine, "a brief history of the land called Israel / Palestine / Canaan / the Levant". Apanhei-a no brilhante Brain Pickings, onde Maria Popova dedica umas linhas a Nina Paley.





É isto o Verão: uma condenação ao resumo. (Não me refiro, como é evidente, à silly season; essa impõe outro tipo de resumo...) Sobretudo os Verões atípicos, os que se aproveitam dessa velha e sábia ilusão que é a pausa, a suspensão, para nos lançarem na armadilha do tempo. 

Eu, por exemplo, estou a aprender a lidar com a energia inesgotável de um bebé 24 horas por dia. Em Agosto, o M. não tem creche; eu e o P. continuamos a ter os nossos "afazeres diurnos", para usar parte de um verso do Pina. Não sei como fazem as pessoas que têm três e quatro filhos. Não sei como fazem e quero saber. Por favor, expliquem-me. Este blogue tem caixa de comentários. Aguardo as vossas receitas mágicas. Preferia que me enviassem poções, já preparadas e prontas a actuar, mas calculo que seja mais simples partilhar receitas.

Chegaram-me ontem... Ontem não, há dois dias talvez; este post está a ser escrito desde Domingo, não há meio de o terminar, o M. acorda, o Continente online chega com mantimentos, os amigos ligam, o trabalho acena ao longe... Dizia: chegaram-me ontem hipóteses no boletim do Baby Center: uma lista de coisas que devo fazer para me manter "sane". Ora, a lista já vem tarde - once insane... - e não me parece que banhos de imersão ou idas ao cabeleireiro me curem. Talvez me deva assumir como dependente. Ou viciada. Dependente da minha criança, viciada na sua autoridade de trazer por casa e pelo coração, na sua energia inesgotável e demolidora para o ser humano comum. Sinto-me em queda nos dias em que as dores de costas se alongam até aos ouvidos e aos dedos dos pés; durmo mais uma hora nessa noite para compensar; no dia seguinte, eis-me novamente capaz de tudo. 

Por isso, nestes dias de ausência, de impossibilidade de escrever neste blogue, de ligar sequer o computador (repito: aguardo poções e receitas mágicas), fingimos que temos realmente tempo. Para o que começa a ganhar a forma de uma fórmula: "as nossas coisas". 

Coisas como, por exemplo, encher balões, encher a casa de balões.



Coisas como vestir os fatos de banho e ir para a praia, crentes de que o vento será brando.



Coisas como espreitar a cidade das nossas janelas. 



E seguir devagar as nuvens a partir do nosso chão.



Coisas como desafiar a luz. Em modo contraluz.



Coisas como fazer festas à nossa andorinha. E aprender a palavra andorinha.


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Andorinha Bordalo Pinheiro n'A Vida Portuguesa.


Coisas como passear os clássicos.


T-shirt Zippy. Calções Zara. Carrinho Imaginarium.
Ímans/ Bonecos "Magnetic Personalities" 
Platão, Kant, Hegel, Nietzsche, Poe na Philosophers Guild.



Coisas como começar a partilhar segredos e rever o livro que aí vem: A Palavra Perdida, com texto meu e desenhos da Marta Madureira (ed. Arranha-Céus).



Coisas como tirar retratos em livrarias e trazer para casa livros que não podemos de maneira nenhuma lá deixar.




Coisas como ouvir um milhão de vezes as canções de que mais gostamos.







Em suma: coisas como criar as nossas próprias regras do Verão. Enquanto decoramos, para estações e tempos futuros, as dos dois rapazes imaginados por Shaun Tan neste belíssimo álbum editado pela Kalandraka





Parecem-nos regras imprescindíveis para o veraneante de mente sã.




Por que motivo termino com este livro e com estes rapazes?



Porque Agosto, sendo o menos cruel dos meses, é também o mais traiçoeiro. Não será por mal que junta ao sol o vento quente e a morte gelada dos avós, dos amigos, dos gatos. Agosto, note-se, partilha da natureza do Verão, aqui a norte da linha do Equador. E instala-se nessa fenda onde nada é o que parece, "nada é evidente", para regressar ao início deste post. "Para pequenos e grandes", alerta Shaun Tan, a abrir o livro citado. Refere-se não apenas ao seu álbum, como também às regras do Verão e, por maioria de razão, ao próprio Verão. E às palavras de que gostamos, que aprendemos a guardar desde pequenos. "Porque eu sou pequeno, mas os meus bolsos são fundos", conta o Manuel, narrador d'A Palavra Perdida.




"Para pequenos e grandes" são, assim, As regras do Verão, livro que nos acende um nó na memória e, logo depois, um outro na garganta (as ilustrações de Shaun Tan - magníficas e brilhantes de tão dark - são, aliás, um jogo entre a luz e a sombra, entre os tons da revelação e os do apocalipse...). Demonstra-nos que os nossos medos - reais e imaginados - não mudam à medida que crescemos: aumentam. Tal como a nossa certeza de falhar o resgate do mundo e do último dia de verão; tal como o nosso receio de falhar nas tarefas da casa, nas tarefas da maternidade, nas tarefas da vida. E nas da morte. No caminho de casa. Na palavra-chave. 



Eu tenho uma. Uma palavra-chave. Ensinam-ma livros como este de Shaun Tan. É uma palavra-chave aparentemente simples. Tem, contudo, muitos dentes, dentes luminosos, capazes de desfazerem nós. Aviso que não é nada evidente, a minha palavra-chave, e que, se os dentes se posicionarem de modo a conseguirem abrir a porta desse lugar escuro que é um coração, esconde dentro dela outra palavra ainda menos evidente: "amizade". A minha palavra-chave - uma palavra achada - é esta: PARTILHA. 

PIM!

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