sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Confiar no diamante.

Há uma semana, partimos para o Fundão a convite da Margarida Gil dos Reis, organizadora (irrepreensível) do Festival Literário da Gardunha, cujo tema é a viagem. Gostei da serra, gostei das pessoas, gostei das conversas, gostei de saber o M. a apanhar castanhas com o P.. 





Casaco Zara. Calças H&M. Ténis Bobux na Organii Bebé.

Na mesa em que participei, "Poéticas da Viagem", com a Filipa Leal, a Catarina Nunes de Almeida e o Ricardo Gil Soeiro, comecei por lembrar Karl Kraus — "Quanto mais de perto olhamos para uma palavra, tanto mais de longe ela nos devolve o olhar." — para, percorrendo os meus livros, chegar ao lugar que se tem feito habitação neles: os espaços fechados, as casas. Terminei, por isso, e acompanhada por Bachelard e por Françoise Minkowska, com as casas que desenhei aos 4, 5 anos. Acrescentando que hoje já só sei desenhar casas com palavras.







Javier Reverte, também em viagem pelo Fundão, apontou, na sua comunicação, um conjunto de regras que devem orientar o escritor-viajante. E mencionou, às tantas, a sua permanente vontade de partir: contou que, se vê um filme ou um documentário que lhe mostram um sítio distante, ainda desconhecido, deseja partir para poder sentir esse lugar. Desse ponto de vista, julgo que sou viajante. Eu quero partir, quero ir sentir esses lugares distantes, mas, uma vez lá, uma vez sentidos os lugares distantes, quero desesperadamente regressar. Regressar a casa. 

Talvez por essa razão as minhas histórias do Fundão, da Gardunha, são as histórias de casa. Todos os dias, ligava à minha mãe, que tem o hábito de partilhar ao pormenor as conversas, as actividades dos meus sobrinhos, o F. e o A.. Num desses dias, julgo que na sexta-feira (era dia de escola, sim, era sexta-feira), chamei os miúdos ao telefone. O A., questionado sobre o fatídico dia de escola, arrumou o assunto:

- Olá, querido, como foi a escola?
- Educativa.

O A. tinha passado o dia a apanhar pedras. Ao que parece, circulou pelo colégio o rumor de que a mãe de um amigo estava com dificuldades financeiras. Rapidamente foi elaborado um plano de resgate: o A. e alguns colegas apanhariam, no recreio, sacos e sacos de pedras. Pedras preciosas. Diamantes. Para oferecer à mãe do amigo.

- Avó, estás a ver esta? Esta deve valer uns 50 cêntimos, vai ajudar imenso. E esta, Avó? Estás a ver? Esta é um diamante, vai resolver o problema.
- Um diamante, querido? 
- Sim, Avó.
- Mas não se apanham diamantes assim no meio da rua.
- Apanham, sim. Não vês? É um diamante. É uma pedra brilhante e pontiaguda. É um diamante.

O A. está a atravessar a fase em que o dinheiro se transforma em tema ou, pelo menos, motivo. E em que não pode perder nenhum comboio. Mal reparou que o irmão estava a escrever um livro, resolveu também ele pegar no papel e na caneta. A história, de um menino chamado Jorge, relata um pesadelo: o Jorge, menino "riquíssimo da silva", sonha que é muito pobre: de repente, vê-se numa casa sem televisão e sem "coisas electrónicas". "Ó MEU DEUS!" 



Já o F., pouco depois de pegar no exemplar d'A Palavra Perdida que lhe ofereci, anunciou-me ao telefone, nessa sexta-feira em que cheguei ao Fundão, que começou a escrever um livro "sobre um rapaz que chega a outro planeta e encontra uma miúda; o rapaz chama-se Pedro". Ontem deu-me a ler o início do livro. Anunciou: "É uma história de ficção científica". Li. E expliquei-lhe que não, que é uma história de amor, que pode haver histórias de amor na "Cidade da Comunidade Interespacial", que é bom que haja histórias de amor nesse lugar distante. 


Fiquei surpreendida ao descobrir que a miúda, cujo nome ele não me tinha anunciado ao telefone, se chama Inês. "(...) era verde, tinha dois rabos de cavalo ou uma coisa do género e uma postura direita." O F. a reescrever o mito. Ou a recriar a sua mitologia pessoal, na qual Pedro e Inês são nomes de tios, de figuras de casa, nomes aos quais ele sempre regressa. "Ou uma coisa do género".


Reparo agora que os meus sobrinhos raramente desenham casas. PIM!

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