Talvez já tenha partilhado aqui histórias do meu Avô, talvez já tenha mostrado aqui imagens nossas, talvez já tenha dito aqui que o papel mais precioso que guardo é um minúsculo autógrafo em que ele escreveu, na sua letra tão firme quanto trémula, tão "o que em mim sente está pensando",
Minha neta Inês, sol da minha vida.
Anos mais tarde, quando o meu Avô morreu, desaprendi uma centena de coisas. Entre elas, contar histórias. Recuperei aos poucos. Questionando sempre: "Com que palavras? E sem que palavras?".
Anos mais tarde, encontrei um poeta cuja obra se deixava habitar por versos que diziam qualquer coisa parecida com isto, da mesma substância: "Só me faltavas tu para me faltar tudo, / as palavras e o silêncio, sobretudo este."
Anos mais tarde — é sempre anos mais tarde, se repararem, até quando são apenas dias — reaprendi a contar histórias. Nenhuma delas sem o meu Avô. Sobretudo as que não falam dele. Há outras mais claras, como esta que escrevi no seguimento de um programa de rádio que tive, "A História Devida". Pediram-me a minha "história devida". Que é esta:
Come
chocolates, pequena
«Come
chocolates, pequena» é uma das frases da minha vida. Talvez por ter
sido uma das que mais ouvi em criança. Não sabia de onde vinha; ou
melhor, sabia o que então fazia sentido saber: vinha do meu avô
Zeca, e isso bastava para que a frase soasse bem. Era ele quem a
repetia vezes sem conta, tantas quantas aquelas em que me levava pela
mão até ao corredor dos chocolates do supermercado da D. Lizete, e
juntos ficávamos horas (horas, de facto) a olhar as prateleiras,
perdidos entre sombrinhas e losangos Regina, enquanto ele dizia,
quase em surdina, como se fosse uma oração, «Come chocolates,
pequena».
E eu
comia chocolates. Passava os dias a comer chocolates. Quilos de
chocolates; de manhã, à tarde, à noite; antes, durante, depois, em
vez das refeições. A minha avó revoltava-se; os meus pais não.
Apenas porque não imaginavam o que se passava. Não suspeitavam. Nem
de nós, nem do pequeno crime em que éramos cúmplices, honrando um
princípio que o meu avô repetia em nossa mais que legítima defesa:
«Deixem a pequena comer chocolates; mais vale comer chocolates do
que não comer nada». E, no entanto, as provas eram irrefutáveis:
uma mochila Palmers acabada de chegar de um passeio de Verão com uma
grande mancha castanha denunciava a presença abusiva de chocolates
na bolsa exterior; as dores de barriga matinais denunciavam que, mais
do que odiar o infantário, tinha ocorrido na véspera um consumo
manifestamente desequilibrado de chocolate; a antipatia para com os
que partilhavam os nossos espaços (Fiat 600, quarto dos brinquedos,
cadeirão, despensa) denunciava o receio de que alguém ousasse pedir
um dos nossos chocolates.
Até
que chegou o dia (mesmo que não tenha tudo acontecido no mesmo dia,
sempre me pareceu assim). Chegou o dia em que o meu avô morreu, eu
fiquei alérgica a chocolate e comecei a procurar poemas para ler. É
certo que o meu avô já me lia poesia, sobretudo Miguel Torga, os
volumes do Diário; puxava-me para o colo, acendia um cigarro,
eu tirava a prata ao chocolate, ele lia versos soltos. Ali ficávamos
entre os nossos vícios, cometendo um crime que era só nosso e que
reduz a minha infância ao essencial.
Naquele
dia, com a morte, a alergia e a necessidade de procurar poemas, fui
expulsa da infância. Descobri um livro da Ática, Poesias de
Álvaro de Campos, e fui lendo. «Come chocolates, pequena». Lá
estava a frase. E, apesar de nunca mais ter sido a pequena que comia
chocolates, percebi então que não só não havia mais metafísica
no mundo senão chocolates, como também que não havia mais
cúmplices na minha vida senão o avô Zeca.
Anos mais tarde, o P. ofereceu-me chocolates (Regina) e uma pulseira de prata na qual mandara gravar "Come chocolates, pequena". O P. não pronunciou a frase, mandou gravá-la, cumprindo o silêncio. "(...) o silêncio, sobretudo este."
Anos mais tarde, chegou às livrarias um livro da Catarina Sobral titulado "O Meu Avô" (ed. Orfeu Negro). Saí à rua. Queria trazê-lo para casa. E confirmar se aquele Avô podia ser o meu. Podia:
Anos mais tarde, pensei oferecer ao M. este presente de anos (dois anos, em breve), para ele crescer fitando o modo como eu cresci, fitando o lugar onde eu cresci:
Imagem retirada daqui. |
Anos mais tarde, passei o testemunho:
É de uma enorme responsabilidade ser o sol de alguém. PIM!
lembro-me dos dois, do avô e da neta, do recreio da escola primária de santo antónio dos cavaleiros.
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