Cá em casa temos o salutar costume de celebrar todos os dias a liberdade. Se se considerar que a liberdade é, entre outras coisas, a possibilidade de escolha, como disse ontem o Helder Macedo na Casa Fernando Pessoa, na sessão d'Os Espaços em Volta dedicada a Abril.
Eu não sei definir a liberdade. Até porque eu nasci em 1979, em liberdade. Terei aprendido a compreender a liberdade com histórias - para mim, quase ficções - de momentos em que as pessoas não viviam em liberdade; histórias ouvidas ao meu Avô, por exemplo, que passou um mês numa solitária depois de ter sido denunciado à PIDE. Parece que alguém contou umas mentiras sobre ele, mentiras que provavelmente até podiam e deviam ser verdade - porque o meu Avô era um homem livre e justo, coisas então pouco toleradas.
Aprendi também com outras histórias, lidas nos livros. Como disse, nasci em 1979, numa casa cheia de livros, e deixaram-me escolher os que queria ler. Pude ler tudo o que quis, pude tirar das estantes aqueles livros que os meus avós, antes do 25 de Abril, tinham escondidos atrás delas.
Compreendi, então, a liberdade lendo a Mafalda, do Quino, o José Cardoso Pires, o Abelaira, o O'Neill, o Assis Pacheco, para citar alguns nomes. Ou, já adulta (supostamente adulta), um livro do Manuel António Pina, um livro fundamental, como são para mim todos os do Pina. Chama-se O tesouro.
Ilustração de Pedro Proença para O tesouro, de Manuel António Pina
(ed. Assírio & Alvim)
Costumo andar com O tesouro debaixo do braço. Que é como quem diz: dentro da memória. Assim tenho sempre resposta quando me perguntam o que é a liberdade. A um país sem liberdade chama-se, neste livro, o país das pessoas tristes. É um país onde as pessoas se isolam, não comunicam. Sufocam cheias de aflição. E quase tudo lhes é proibido - até beber coca cola.
É evidente que, mesmo com O tesouro debaixo do braço, continuo a aprender a liberdade todos os dias. Aprendo-a com os meus amigos e com a minha família, com o meu filho - haverá lugar mais livre do que a infância? -, e com mais leituras. É importante ler ou reler hoje poetas como os do grupo do Café Gelo: o Manuel de Castro e o seu Paralelo W. ("Há um país fatal, uma zona de aventura, um segredo..."), o Helder Macedo, o Herberto Helder, o José Manuel Simões, que em breve será lido, quando a Abysmo publicar as suas Sobras Completas.
Podíamos começar por ler, como introdução à liberdade - que contém nela a coragem - e a estes poetas, um texto do Helder Macedo. Chama-se O Drummond Português e revela como Drummond de Andrade foi fundamental para uma geração de escritores portugueses - também pelas suas lições de liberdade (em todos os sentidos). O Helder define os do Gelo "como um grupo heterogéneo de jovens poetas e de jovens pintores que tinham em comum uma atitude de recusa". Ora,
volta a ser muito importante hoje aprender a recusar, aprender a ter
- lucidamente - uma atitude de recusa. E encaremos este lucidamente
em termos poéticos para não deixarmos os loucos de fora.
Por causa desses jovens poetas do café Gelo, tenho pensado muito no
que é viver em liberdade - ou fora dela. E tenho olhado para o que
escrevo com esses óculos. Costuma-se dizer que o amor e a morte são
os principais temas de toda a literatura. E eu acrescento, no meu
caso, a liberdade. No meu livro mais recente, A habitação de Jonas, existem vários espaços fechados e existem zonas em que
a comunicação falha, zonas em que se procura uma linguagem. A
impossibilidade de escolha, o estar fechado, são imagens
recorrentes. E por vezes, nesse livro, só a recusa permite avançar,
seguir em frente - encontrar o outro. Ser livre, em suma.
Volto ao livro do Pina, O tesouro. Diz-se lá, quase no fim: "Tudo isto aconteceu há muito tempo (ainda tu não tinhas
nascido), num país muito distante." Eu entretanto nasci, em 1979, como já referi. Aprendi com esta gente
toda e com a minha família a viver em liberdade, a ler, a respirar
fundo, a pronunciar as palavras em voz alta e, acima de tudo, a
respeitar os outros. A liberdade é talvez isso: poder apreciar não
apenas o respeito que os outros têm por nós, como poder apreciar,
poder gostar de respeitar os outros.
E poder sair à rua com os amigos. Que é o que vou fazer hoje. Sairei ao fim da tarde para a galeria Abysmo, onde gosto de ir passear com o M. (galeria "baby friendly"!) e onde, às 18h, vão ser inauguradas duas exposições que partem de livros de autores/editores que muito prezam a liberdade.
O M., muito espantado a olhar para a colecção do Jorge Silva (exposição "Salão Silva"),
na galeria Abysmo.
É que é também sobre a liberdade, isso de aprender a coincidir com o pássaro, isso de aprender a conhecer o bicho.
Por
ter receio de não ser amado,
o
caçador andava sempre armado.
Caminhava:
a
espingarda ao ombro,
a
faca entre os dentes.
A
caneta, levava-a presa na orelha
por
ter receio de avistar um bicho
sem
ter tempo de lhe anotar o nome,
de
educadamente o saudar antes de disparar.
Por
ter tanto e tão intenso receio,
o
caçador ignorava ser da sua natureza disparar primeiro.
Ele,
que ignorava até que existiam bichos.
Nunca
os vira. Nem aos pares.
Andava,
então, armado
por
ter receio do desconhecido - e perdia-se
no
mato como na imaginação. Cismava
em
criaturas tremendas e até no próprio mato.
Porque
ele era um caçador da cidade:
se
via um arranha-céus, chamava-lhe girafa. Desenhava
um
bicho,
o
pescoço longo,
as
pernas compridas,
e
a imaginação do caçador ficava habitada por girafas.
Se
via um camião, chamava-lhe rinoceronte. Desenhava
um
bicho,
as
narinas largas,
o
chifre destemido,
e
a imaginação do caçador ficava habitada por rinocerontes.
O
caçador passava os dias nisto. Acreditava que mais não sabia
do
que observar e imaginar, desenhar e passear:
a
espingarda ao ombro,
a
faca entre os dentes,
a
caneta presa na orelha.
Por
ter receio do esquecimento do mundo,
era
com palavras que resolvia o assunto da criação.
Era
tanto e tão intenso o seu receio, maior ainda
do
que a girafa e o rinoceronte, que o caçador ignorava ser
da
sua natureza o assunto da morte.
Ele,
que não carregava na espingarda balas,
mas
dúvidas.
Por
isso, ele caçava
com
gato, cão e leão,
com
impala e búfalo,
com
palanca e outros bichos
que
escolhiam a imaginação do caçador
para
nunca se extinguirem.
De
todos, o maior receio do caçador era o de não ser eterno.
Por
isso, repetia-se:
repetia
os desenhos e as palavras,
repetia
os traços e os nomes dos bichos.
Repetia-os
como a uma oração e pedia
a
existência dos bichos.
Porque
o caçador, mais do que receoso, era solitário.
A
cidade pouca companhia lhe fazia,
a
ele, que andava armado,
a
ele, que desejava ser alto por dentro como os pássaros
sem
saber sequer o que era um pássaro.
Até
que um passáro lhe entrou no quarto.
Não
era dali o pássaro. Procurava apenas
uma
imaginação onde viver.
O
caçador não podia adivinhar que aquele pássaro era um pássaro,
apesar
de ser igual à palavra pássaro que o caçador tinha na cabeça
e
ao desenho pássaro que o caçador tinha no papel.
Apanhou-o.
E partiu.
Viajou
durante mais de sete dias.
Colheu
alimento sobre a pele
de
girafas e rinocerontes.
Chegado
ao seu destino,
a
mais de sete dias da cidade,
a
mais de sete dias do receio,
a
mais de sete dias da solidão,
o
pássaro libertou o caçador.
O
caçador viu pela primeira vez um bicho.
Tirou
a espingarda do ombro,
a
faca dos dentes,
a
caneta da orelha.
Sem
receio, aprendeu a coincidir com o pássaro,
aprendeu
a conhecer o bicho.