quarta-feira, 30 de abril de 2014

IndieJúnior

O IndieJúnior entrou na pré-adolescência. São 10 anos celebrados com uma campanha da Leo Burnett Lisboa que inclui este cartaz desenhado por Zé Gouveia:




O mote, um elogio à imaginação e à criatividade, mas também ao espanto - "As crianças não são previsíveis. Por que razão os filmes infantis têm de ser?" -, sintetiza aquilo que já sabemos (ou devíamos saber) e que, no entanto, tanta gente esquece. Nomeadamente quem cria objectos audiovisuais para a infância. Às vezes, ligo a televisão nos canais infantis e percebo por que motivo não deixo ainda o M. ver TV. Eu, que aprendi a consumir desenfreadamente desenhos animados ao colo do meu Avô. Era um dos nossos vícios - tão nobre quanto o dos chocolates e o da poesia.

Sopraram-se as velas da primeira década do IndieJúnior no fim-de-semana passado. Mas, até 4 de Maio, ainda há filmes para ver. Se o M. já tivesse idade para ir ao cinema, gostava de o levar a várias sessões. Vamos espreitando uma ou outra no computador. Começa a ver com muita atenção, tece os seus comentários no seu melhor "manelês" e depois distrai-se com os objectos que ocupam a minha secretária: já trincou o teclado, falou ao telefone com o rato, roeu lápis e canetas, guardou afias nos bolsos, comeu papel... Fui antecipando outros desastres. Afinal, as crianças até têm o seu grau de previsibilidade. Pelo menos, perante crianças ligeiramente mais velhas.

E o que esta criança ligeiramente mais velha queria mesmo era fechar-se amanhã, feriado, nas salas por onde andam a circular os filmes do IndieJúnior. (Um dia, hei-de vingar-me desta privação de cinema a que estou sujeita há mais ou menos um ano e meio). Não podendo, deixo aqui os links para alguns segundos de alguns dos filmes que queria muito ver nos próximos dias (não sei por que motivo não consigo partilhar directamente os vídeos neste post...).

Dia 1, às 16h, na Culturgest; dia 4, às 11h, no Cinema City Campo Pequeno, e às 16h30 no S. Jorge.

Dia 1, às 16h, no Culturgest; dia 4, às 11h, no CInema City Campo Pequeno.

. A Tocar Piano, de Yi-Chien Chen
Dia 1, às 11h, no Cinema City Campo Pequeno, e às 15h no S. Jorge; dia 3, às 16h, na Culturgest.

Dia 4, às 16h, na Culturgest.
Dia 4, às 17h, no Cinema City Campo Pequeno.


O M. tem dado umas gargalhadas e tem dançado com os gatos de Talento Escondido, de Miran Miosic (dia 1, às 11h, no Cinema City Campo Pequeno, e às 15h no S. Jorge; dia 3, às 16h, na Culturgest).

Está tudo aqui

Nós vamos continuar em casa a puxar caracóis. 




T-shirt Kids Case comprada na Orfeo
Calças Indikidual compradas na Loja Dada


Ou então no jardim, ao sol, a dar pão aos patos. PIM!


terça-feira, 29 de abril de 2014

Amigo carteiro: quatro homens feitos de tinta e papel e um macaco feito fato.

Amigo carteiro,

Bem sei que és apenas o mensageiro, e não me esquecendo eu dos dias em que nos entregas notificações das Finanças e multas da EMEL, outros há em que compensas tudo: fazes-nos felizes quando nos trazes coisas bonitas. 

Um abraço grato para ti, que, por nos servires com tanto esmero 
logo ao raiar do dia, conheces já de cor as cores dos nossos pijamas,

I.


Chegaram hoje cá a casa quatro homens feitos de tinta e papel e um macaco feito fato.

Primeiro (contrariando a teoria da evolução), os homens. São eles: Salgueiro Maia, Aníbal Milhais, Fernando Pessoa e Almada Negreiros - gente real. Ou O Homem do Tanque da Liberdade, Um Herói Chamado Milhões, O Menino que Era Muitos Poetas e um homem que "nasceu grande/ numa ilha muito pequena", um homem "com tanto talento para tudo" que merece um viva - gente assim descrita e chamada por José Jorge Letria. Ou António Jorge Gonçalves, Nuno Saraiva, João Fazenda e Tiago Albuquerque - gente que desenhou a gente real e a colocou nesse território instável que se situa algures entre a memória e a imaginação. O menino Fernando, por exemplo, nunca se mostrou em público tão elegante. Já o defendi aqui: que Pessoa tão chique! 




Eis os primeiros títulos da colecção Grandes Vidas Portuguesas, uma parceria da INCM com o Pato Lógico, casa sobre a qual tanto tenho falado. E como não? Num blogue dedicado às criações para a infância cabem as vezes que forem necessárias e merecidas as editoras que compreendem o que é na sua essência a literatura infanto-juvenil. E que criam livros que são também objectos valiosos.




Tendo este blogue roubado o título ao sonoro PIM! do Manifesto Anti-Dantas, de Almada, é justo que me detenha nesse volume e lhe preste homenagem, espreitando-lhe a vida em verso que José Jorge Letria aqui lhe dá e os tons de laranja e preto com que Tiago Albuquerque aqui lhe contorna o rosto, o corpo, os jeitos, as obras e as manias. 

Ouçam bem:




E agora observem:




Eu olho para este Almada e vejo, com a nitidez com que o guerreiro consentiu que o olhassem, o "poeta d'Orpheu, futurista e tudo"; encontro nele o génio que seria capaz de elogiar Amadeo, insultar Dantas e atingir Portugal com a bala certeira e irónica das palavras: "O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades." PIM!


Mas nem só de palavras e desenhos se vive cá em casa. Somos vaidosos. Como Almada, aliás. Prestamos-lhe, pois, mais uma justa homenagem com um fato-macaco (ou overall, diriam os modernistas...), bem ao seu gosto. 



Jardineiras da Phister & Philina, marca dinamarquesa da Pure Kids que desde 2004 
anda a fazer as crianças nórdicas mais felizes e bonitas. Não há melhor sítio para 
comprar roupa da Phister & Philina do que o Boozt, sempre com descontos e promoções.

(Cabide Zara Home Kids)




É para o M., claro, o overall. Tão bonito quanto prático: sabem pais e mães de crianças que ainda usam fraldas e que já foram obrigados a despir por completo os filhos em espaços públicos cheios de correntes de ar que nem sempre os fatos-macaco e as jardineiras têm botões na zona interior das pernas. Este cumpre todas as regras da boa e salutar frequência de estabelecimentos públicos. PIM!

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Querer muito: um ovo para nos escondermos a sonhar.

Há um livro do qual não nos separamos cá em casa. Mesmo antes de ter sido publicado, já suspeitávamos de que um dia nasceria um livro assim. Nisso, os livros são parecidos com as pessoas. E noutras coisas. 

O livro a que me refiro chama-se Querer muito. Escreveu-o o João Paulo Cotrim; desenhou-o o André da Loba; publicou-o a APCC. É um livro sobre o sonho, que nos dá a verdadeira dimensão daquilo que podemos ser. Sem sequer ser preciso crescer para lá chegarmos. Enganem-se os que pensam que o que está aqui em causa é o ter. Não, não: ao deixar escrito "Porque me dão uma coisa quando quero tudo?" é de ser, do ser e de seres que o João Paulo está a falar.






Por nunca nos separarmos dele, por muito - tanto! - o querermos, resolvi eu esta tarde roubar este título ao João Paulo Cotrim (de quem sei ter desde já o perdão por tamanha infracção, pois ele é um mui misericordioso e generoso rapaz para aqueles que quer[e] muito). Para quê? Para baptizar uma nova série de posts do PIM!, a primeira, na verdade.

O que queremos muito hoje, numa segunda-feira que se segue a um Domingo de dores de dentes, de novos molares, de gengivas inchadas, de horas de choro, daquele tipo de desconforto que (já percebi) só desaparece com horas de festas no pescoço e "popós" à volta?




O M. tem uma sweat-shirt La Queue de Chat comprada na Loja Dada.
E, entre os "popós" que roubou aos primos, está o favorito Faísca Mcqueen 
e a Sally (julgo eu que é a Sally...). 


O que queremos muito nesta segunda-feira é isto: um ovo para nos escondermos a sonhar. 





Um casulo. Aliás, a dupla de designers franceses que o criou, Binome, chamou a este esconderijo "Cocoon". Queremos muito. PIM!

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A liberdade - um tesouro debaixo do braço.

Cá em casa temos o salutar costume de celebrar todos os dias a liberdade. Se se considerar que a liberdade é, entre outras coisas, a possibilidade de escolha, como disse ontem o Helder Macedo na Casa Fernando Pessoa, na sessão d'Os Espaços em Volta dedicada a Abril.

Eu não sei definir a liberdade. Até porque eu nasci em 1979, em liberdade. Terei aprendido a compreender a liberdade com histórias - para mim, quase ficções - de momentos em que as pessoas não viviam em liberdade; histórias ouvidas ao meu Avô, por exemplo, que passou um mês numa solitária depois de ter sido denunciado à PIDE. Parece que alguém contou umas mentiras sobre ele, mentiras que provavelmente até podiam e deviam ser verdade - porque o meu Avô era um homem livre e justo, coisas então pouco toleradas.

Aprendi também com outras histórias, lidas nos livros. Como disse, nasci em 1979, numa casa cheia de livros, e deixaram-me escolher os que queria ler. Pude ler tudo o que quis, pude tirar das estantes aqueles livros que os meus avós, antes do 25 de Abril, tinham escondidos atrás delas.



Compreendi, então, a liberdade lendo a Mafalda, do Quino, o José Cardoso Pires, o Abelaira, o O'Neill, o Assis Pacheco, para citar alguns nomes. Ou, já adulta (supostamente adulta), um livro do Manuel António Pina, um livro fundamental, como são para mim todos os do Pina. Chama-se O tesouro



Tenho estas três edições do livro: a primeira, publicada em 1994 pela Associação 25 de Abril e a APRIL; outra, de 2005, uma edição da Campo das Letras comemorativa do 31º aniversário do 25 de Abril, com ilustrações de Evelina Oliveira; e ainda uma terceira, da Assírio & Alvim, a minha preferida, de 2013, com belíssimos desenhos do Pedro Proença (podem espreitar parte do livro aqui).



Ilustração de Pedro Proença para O tesouro, de Manuel António Pina 
(ed. Assírio & Alvim)


Foi neste livro que João Botelho se inspirou para filmar a curta Se a memória existe, que passou por Veneza, em 1999. E foi também a partir deste livro que o encenador João Luiz criou a peça homónima que a companhia Pé de Vento apresenta este fim-de-semana no portuense Teatro da Vilarinha. A interpretação é do excelente Rui Spranger, que tanto tem trabalhado os textos do Pina.

Costumo andar com O tesouro debaixo do braço. Que é como quem diz: dentro da memória. Assim tenho sempre resposta quando me perguntam o que é a liberdade. A um país sem liberdade chama-se, neste livro, o país das pessoas tristes. É um país onde as pessoas se isolam, não comunicam. Sufocam cheias de aflição. E quase tudo lhes é proibido - até beber coca cola. 

É evidente que, mesmo com O tesouro debaixo do braço, continuo a aprender a liberdade todos os dias. Aprendo-a com os meus amigos e com a minha família, com o meu filho - haverá lugar mais livre do que a infância? -, e com mais leituras. É importante ler ou reler hoje poetas como os do grupo do Café Gelo: o Manuel de Castro e o seu Paralelo W. ("Há um país fatal, uma zona de aventura, um segredo..."), o Helder Macedo, o Herberto Helder, o José Manuel Simões, que em breve será lido, quando a Abysmo publicar as suas Sobras Completas

Podíamos começar por ler, como introdução à liberdade - que contém nela a coragem - e a estes poetas, um texto do Helder Macedo. Chama-se O Drummond Português e revela como Drummond de Andrade foi fundamental para uma geração de escritores portugueses - também pelas suas lições de liberdade (em todos os sentidos). O Helder define os do Gelo "como um grupo heterogéneo de jovens poetas e de jovens pintores que tinham em comum uma atitude de recusa". Ora, volta a ser muito importante hoje aprender a recusar, aprender a ter - lucidamente - uma atitude de recusa. E encaremos este lucidamente em termos poéticos para não deixarmos os loucos de fora. 

Por causa desses jovens poetas do café Gelo, tenho pensado muito no que é viver em liberdade - ou fora dela. E tenho olhado para o que escrevo com esses óculos. Costuma-se dizer que o amor e a morte são os principais temas de toda a literatura. E eu acrescento, no meu caso, a liberdade. No meu livro mais recente, A habitação de Jonas, existem vários espaços fechados e existem zonas em que a comunicação falha, zonas em que se procura uma linguagem. A impossibilidade de escolha, o estar fechado, são imagens recorrentes. E por vezes, nesse livro, só a recusa permite avançar, seguir em frente - encontrar o outro. Ser livre, em suma.

Volto ao livro do Pina, O tesouro. Diz-se lá, quase no fim: "Tudo isto aconteceu há muito tempo (ainda tu não tinhas nascido), num país muito distante." Eu entretanto nasci, em 1979, como já referi. Aprendi com esta gente toda e com a minha família a viver em liberdade, a ler, a respirar fundo, a pronunciar as palavras em voz alta e, acima de tudo, a respeitar os outros. A liberdade é talvez isso: poder apreciar não apenas o respeito que os outros têm por nós, como poder apreciar, poder gostar de respeitar os outros.

E poder sair à rua com os amigos. Que é o que vou fazer hoje. Sairei ao fim da tarde para a galeria Abysmo, onde gosto de ir passear com o M. (galeria "baby friendly"!) e onde, às 18h, vão ser inauguradas duas exposições que partem de livros de autores/editores que muito prezam a liberdade. 




O M., muito espantado a olhar para a colecção do Jorge Silva (exposição "Salão Silva"), 
na galeria Abysmo. 


Num desses livros (um livro-objecto maravilhoso das edições eterogémeas, essas mesmas, do incansável Gémeo Luís, que tanto dedica à infância), tenho um poema publicado, "O caçador". 





É que é também sobre a liberdade, isso de aprender a coincidir com o pássaro, isso de aprender a conhecer o bicho.


Por ter receio de não ser amado,
o caçador andava sempre armado.
Caminhava:
a espingarda ao ombro,
a faca entre os dentes.
A caneta, levava-a presa na orelha
por ter receio de avistar um bicho
sem ter tempo de lhe anotar o nome,
de educadamente o saudar antes de disparar.

Por ter tanto e tão intenso receio,
o caçador ignorava ser da sua natureza disparar primeiro.
Ele, que ignorava até que existiam bichos.
Nunca os vira. Nem aos pares.

Andava, então, armado
por ter receio do desconhecido - e perdia-se
no mato como na imaginação. Cismava
em criaturas tremendas e até no próprio mato.
Porque ele era um caçador da cidade:
se via um arranha-céus, chamava-lhe girafa. Desenhava
um bicho,
o pescoço longo,
as pernas compridas,
e a imaginação do caçador ficava habitada por girafas.
Se via um camião, chamava-lhe rinoceronte. Desenhava
um bicho,
as narinas largas,
o chifre destemido,
e a imaginação do caçador ficava habitada por rinocerontes.

O caçador passava os dias nisto. Acreditava que mais não sabia
do que observar e imaginar, desenhar e passear:
a espingarda ao ombro,
a faca entre os dentes,
a caneta presa na orelha.

Por ter receio do esquecimento do mundo,
era com palavras que resolvia o assunto da criação.
Era tanto e tão intenso o seu receio, maior ainda
do que a girafa e o rinoceronte, que o caçador ignorava ser
da sua natureza o assunto da morte.
Ele, que não carregava na espingarda balas,
mas dúvidas.
Por isso, ele caçava
com gato, cão e leão,
com impala e búfalo,
com palanca e outros bichos
que escolhiam a imaginação do caçador
para nunca se extinguirem.

De todos, o maior receio do caçador era o de não ser eterno.
Por isso, repetia-se:
repetia os desenhos e as palavras,
repetia os traços e os nomes dos bichos.
Repetia-os como a uma oração e pedia
a existência dos bichos.
Porque o caçador, mais do que receoso, era solitário.
A cidade pouca companhia lhe fazia,
a ele, que andava armado,
a ele, que desejava ser alto por dentro como os pássaros
sem saber sequer o que era um pássaro.

Até que um passáro lhe entrou no quarto.
Não era dali o pássaro. Procurava apenas
uma imaginação onde viver.
O caçador não podia adivinhar que aquele pássaro era um pássaro,
apesar de ser igual à palavra pássaro que o caçador tinha na cabeça
e ao desenho pássaro que o caçador tinha no papel.
Apanhou-o. E partiu.
Viajou durante mais de sete dias.
Colheu alimento sobre a pele
de girafas e rinocerontes.
Chegado ao seu destino,
a mais de sete dias da cidade,
a mais de sete dias do receio,
a mais de sete dias da solidão,
o pássaro libertou o caçador.

O caçador viu pela primeira vez um bicho.
Tirou a espingarda do ombro,
a faca dos dentes,
a caneta da orelha.
Sem receio, aprendeu a coincidir com o pássaro,
aprendeu a conhecer o bicho.