Não era exactamente a árvore que chorava. Eram os olhos que a árvore dava que choravam. A árvore era eu, um farrapo de ser humano à porta da creche à qual regressou hoje o M.. Imóvel, como uma árvore no Inverno, se descontarmos a deslocação das lágrimas, o caminho que percorrem do olho à boca, ao queixo. Pouco me importa que me chamem lamechas, que me digam que "preciso de ter outro filho para me deixar de dramas domésticos", que afirmem que "faz parte, é a vida", que "5 minutos depois ficou bem, de certeza", que "tem que se habituar", "não exageres, com tanta coisa má a acontecer pelo mundo, ficas a pensar nisso".
Meus amigos, notem bem: como contei ontem, eu detesto ratos e houve um que, ainda assim, me conquistou, houve um que me arrancou o coração do peito. Delicadamente, sim, não fosse ele o Frederico, um rato poeta, um rato que despreza os discursos inflamados, moralistas e, no entanto, isentos, destemperados, dos pragmáticos. Esta é a minha natureza, sou desse mundo em que, odiando ratos, se pode amar um único e onde as árvores dão olhos. "Com olhos se vai longe. Desde que estejam abertos, bem abertos". Mesmo que estejam embaciados. Se o meu filho chora quando me vê a mim e ao pai virar costas, eu choro também. Se o mundo inteiro está em ruínas, haver uma criança que chora quando perde os pais de vista é uma hipótese de salvação. De reconstrução. De redenção. De poucos, que são já alguns. Talvez apenas dos que, como a árvore que dava olhos, plantada pelo João Paulo Cotrim e a Maria Keil, na floresta que era "o fundo do quintal" das suas conversas, têm "raízes no coração da terra e ramos que fazem cócegas nas nuvens".
Tal como esta árvore, eu "[d]evia estar calada e quieta, mas não sou capaz". Fiquei quieta uns segundos, quis até voltar para trás. Não podia. Segui caminho, rumo aos afazeres diurnos. Pus-me em movimento com o som do choro do M. nos ouvidos e no coração. Estou a dois quilómetros e duas horas de distância do momento em que fui um farrapo de ser humano à porta da creche à qual regressou hoje o M. e ainda o oiço. "Sou uma árvore no fundo do quintal, não posso ver o que vejo nem falar o que falo.". "Mas não sou capaz.".
E eis-me em movimento: abro a janela às varejeiras que atravessam a casa de Norte para Sul, do Jardim da Estrela para o Tejo, estendo a roupa, atendo telefonemas, partilho artigos de amigos (e que bom foi ler o primeiro texto da Tia R., a Raquel Martins, na Preguiça Magazine), troco mails, marco almoços... Até que começo a arrumar os livros: "Às vezes parece que oiço a paisagem mandar-me calar."
A Árvore que dava olhos foi um presente de anos que o João Paulo Cotrim me ofereceu. É uma edição de 2007, da Calendário de Letras, difícil de encontrar. Quase uma raridade (uma autêntica raridade se atendermos à sua beleza: texto e desenhos). Como a árvore que dava olhos. E que não tem medo de nada e sonha pelo tempo e pelo espaço fora. É uma árvore que imagina. E que me deixa a mim a imaginar que ela foi tudo o que desejou, que ela fez tudo o que quis. Por exemplo: "fazer com as raízes um céu debaixo da terra".
Folheio o livro e ainda me ocorre que o M. não percebe por que razão, depois de tantos dias perfeitos, tivemos que o deixar. Ele não faz ideia do que é o tempo, não faz ideia do que é a rotina, do que é a obrigação, do que é um ciclo, do que é um ano, quanto mais um ano lectivo. Ele é anterior a tudo isso. Volto a folhear o livro e começo a imaginar-nos a regressar da creche, eu a contar-lhe que temos um livro para ler, um livro sobre uma árvore que dava olhos e era amiga de gatos, formigas, lagartos, uma árvore que sente e que desafia o tempo, os ciclos, os anos. Começo a imaginar-nos a "fazer com as raízes um céu debaixo da terra".
Não me deixo, contudo, de "pequenos dramas domésticos". Não deixo sequer de chorar. Mas tenho a cabeça cheia de palavras. E, já o repeti em inúmeros posts, "[p]equeninas coisas me prendem: / uma tarde num café, um livro" (Manuel António Pina). Pequeninas coisas me salvam: este livro, esta árvore. PIM!
Sem comentários:
Enviar um comentário