quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Roupa de baile.

Dias há em que as actividades cá de casa escapam ao território, cada vez mais vasto, da criança. Nos últimos dois dias foi basicamente o que aconteceu. Andei entre a belíssima adaptação que o João Botelho fez d'Os Maias, livro que me acompanha desde a adolescência e sobre o qual poderia escrever um milhão de posts (o mesmo se aplica ao filme: os cenários, desenhados por João Queiroz, o modo como Botelho os filma e ilumina, os actores, Graciano Dias e as revelações Pedro Inês e Hugo Mestre Amaro, as cenas escolhidas por Botelho para estruturar o argumento...) e Antológica, trabalho que volta a reunir no palco do Maria Matos Vasco Araújo e a companhia Cão Solteiro. Afasia, ruído e ego trip do outro lado do espelho numa reflexão sobre um certo meio, uma certa contemporaneidade, para ver até dia 17.

Pelo meio, ainda passei pelo maravilhoso Silverbox Studio, da Rute de Carvalho Magalhães e do Filipe da Veiga Ventura. Tiraram-me cinco retratos; para a semana, escolherei três. O meu preferido é talvez aquele em que estou a olhar para a varanda, de onde se avista um prédio todo ele veias do lado de fora das paredes.




O que há em comum entre este três momentos dos meus últimos dias é o tempo, o tempo em que estive imóvel: tempo da exposição, tempo da narrativa, tempo que importa e se exporta, para recordar um momento da Antológica, de Vasco Araújo e da companhia Cão Solteiro. Lá fora, em todos estes momentos, a chuva, contrariando o Verão tal como o aprendemos aqui, na Lisboa d'Os Maias.

O tempo, aliás, domina as obras: visuais, literárias. Tanto quanto domina os discursos quotidianos: "estou a ficar velha", "já não tenho memória", "quando eu era nova". O outro tempo também, tem vindo a ganhar terreno, tem vindo a derrubar a meteorologia, a arrancá-la, como fruto demasiado maduro, da árvore da ciência: "sabes se vai estar bom tempo amanhã?", "ainda ontem li que ia estar sol e agora isto", "isto não é normal, esta humidade, este tempo". Este tempo não é normal. E nós continuamos a esperar que seja. No capítulo do tempo, estamos sempre de esperanças. 

Ontem, em conversa com a Susana Menezes e com a Rita Tomás, do Maria Matos, afirmei que perdi toda a minha fé nos meteorologistas. No entanto, continuo a consultar obsessivamente e a toda a hora (ou seja, continuo a consultar obsessivamente o tempo no tempo) sites e aplicações como o Accuweather, o Yahoo Weather e aquele outro que já vem instalado nos iPhones. Desconfiada, espreitei-os hoje de manhã. Quero saber o tempo de sábado. Quero eu e quer toda a equipa do Maria Matos que programou e está a preparar com Gonçalo Tocha um verdadeiro baile. Se me gritam a mim e aos meus (isto é programa para toda a família!) "BAILEM!", eu e os meus queremos bailar! Mesmo descrente, opto pois por crer no que antecipa o Accuweather para sábado: "humid with partial sunshine", "26º C". Tanto quanto creio no meu vestido de baile, nos meus passos de bailarina.

Seja como for, já comprei um novo par de galochas ao M., exímio bailarino. (Eis que se infiltra a criança, eis que alastra o território da criança, cobrindo o meu a galope). Passei uma tarde da semana em busca das galochas perfeitas. Mal sabia eu que era tão simples quanto entrar na Zippy (mas quem é que quer ir ao Colombo, sobretudo com esta humidade?), onde agora se pode usar o Cartão Continente (e quem me conhece sabe como eu amo cartões de lojas, descontos, brindes, ofertas...) e onde agora se elaboram os mais inusitados diálogos:

- Quer associar a sua criança ao cartão?
- Sim, sim!
- Preencha a ficha com os dados da criança que quer associar ao cartão.
- Já está!
- Quer usar os 5 euros que tem no cartão associado à criança?
- Sim, sim!
- São 6 euros e 99.
(Ar demasiado exclamativo, demasiado triunfante e impossível de ser traduzido por palavras)

Com o meu ar triunfante impossível de ser traduzido por palavras, contei a história ao P. e contaminei-o com o meu ar triunfante impossível de ser traduzido por palavras. Com o seu ar triunfante impossível de ser traduzido por palavras, o P. tirou-nos do Colombo. Mais tarde, com os nossos ares triunfantes impossíveis de serem traduzidos por palavras, experimentámos as galochas ao M.. 



Isto pode parecer trivial. Mas equivale a chegar ao fim do arco-íris e ter lá o pote de ouro à espera. Daí os ares triunfantes. Apenas quem nunca andou à procura de galochas para crianças que ainda não calçam o 24 pode desprezá-los, a eles, aos nossos ares triunfantes. A partir do 24, há galochas em todo o lado, de todas as formas e feitios. Só que o M. tem pouco tempo, não alcançou ainda o 24, é muito novo, tem muita memória, decora tudo o que viveu até agora. E neste momento - tempo suspenso - passeia-se com as suas galochas amarelas, sola branca, tamanho 22. Roupa de baile. PIM! 

P.S. - Entretanto, partilhei este post no Facebook. A Rita Tomás comentou: "You don't need a weatherman to know which way the wind blows". We don't. 


Subterranean Homesick Blues, Bob Dylan

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