quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Não és rato, não és nada.

Em casa, o M. acorda quase sempre às 7h30 da manhã. Pede: "Lêtinho!". Bebe metade do "lêtinho" e lança novo pedido: "Papa! Ê qué papa!". Eu transformo o leite em papa. Ele come a papa toda e começa a disparar: "Qui é ito?". Seguem-se quase 2 horas de "qui é ito?". O dedo apontado ao mundo e uma rajada de "qui é ito?". São 7h30 da manhã, eu quase não tenho palavras, mas respondo: "Parede. Chão. Tapete. Janela. Livro. Almofada. Candeeiro. Sol. Nuvem. Chuva. Maçaneta. Cadeira. Degrau. Estante." And so on

Hoje de manhã, mais ou menos ao centésimo "qui é ito?", o M. pegou num pequeno livro e folheou-o até uma imagem lhe inspirar novo "qui é ito?". "Ito", no caso, e captado da posição em que eu estava, com a cabeça escondida debaixo das almofadas espalhadas pela sala, eram dois ratos brancos agarrados aos pés de um sofá. Disse "Ratos." 


O M. não ficou satisfeito. Apontou para as letras que na imagem surgem ao lado do sofá e que formam a palavra "confortável." Eu respondi: "Palavra. Confortável.". E acrescentei: "Qui é ito?!" O M. riu-se muito. Por me ouvir imitá-lo. E eu suspirei de alívio por ele ainda não me exigir discursos elaborados, capazes de justificar o motivo pelo qual alguém neste mundo achou que a palavra "confortável" ficaria bem servida com um minúsculo sofá rodeado de ratos. "Qui-é-ito, meu Deus?". 

"Ito" é um certo nojo. Mas é também um certo modo de às 7h30 da manhã regressar a Frederico, de Leo Lionni, para lavar a imaginação e a vista. 

O Frederico cá em casa. Edições da Kalandraka.

Frederico é o único rato do mundo do qual eu gosto. Não me estou a esquecer do Mickey nem da Minnie. Nem do Speedy Gonzales. Nem do Topo Gigio. Encantaram-me até eu cair em mim e perceber que eram ratos. Quem me conhece sabe dos meus dois grandes medos: ratos e tubarões. Quem me conhece já me viu entrar no mar de S. Pedro de Moel em pânico não pelas ondas, mas porque "há-de existir aqui algures um tubarão"; quem me conhece já me viu enfrentar um ratinho do campo com gritos iguais aos de Janet Leigh na cena em que a sua personagem é assassinada no hitchcockiano Psycho

Mas Frederico... Frederico faz-me suspirar. A mim e ao M..



Leituras matinais. O M. com o Frederico e as suas fraldas Dodot.


Porque Frederico não é rato, é poeta. E Leo Lionni, que o inventou, soube-o e explorou-o de modo tão profundo que o pôs a inverter a tradição, a interromper elegantemente a moral da velhinha fábula da Cigarra e da Formiga. Frederico impõe uma nova ordem - na história da literatura para a infância e no meu coração. E é único - do olhar à cor do pêlo, um cinzento que poderíamos definir como "de rato" e que, todavia, para mim é tão somente "de Frederico". É que, repito, Frederico não é rato, é poeta. Dos bons. Ou seja: não é rato, (não) é nada. Ele movimenta-se no campo da inutilidade; é um rato que gosta de flores e cores, do sol e de palavras. É um rato caeiriano. Que acumula o essencial - e o essencial, sempre invisível, é nada. 




Jardineiras Petit Patapon. T-shirt Zippy. Sapatos Livie & Luca.

Sem espírito prático, Frederico procura o belo numa atitude que remonta aos gregos. O melhor de tudo é que, ainda por cima, Frederico cora ao converter descrentes, esses insaciáveis trabalhadores servos do capitalismo prevenido do campo e da cidade. PIM!

2 comentários:

  1. Só hoje me dei conta que já tinham regressado. Hoje, o dia que amanheceu com cheiro a outono. Gosto de vos ler. :-)
    Filipa

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    1. Obrigada, Filipa! É bom saber que há quem esteja atento, a ler-nos.

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