quinta-feira, 3 de julho de 2014

Crónicas contemporâneas.

Regresso a dois livros recebidos há uns dias e já aqui mencionados, mas apenas em imagens. Esses dois livros são filhos do irrequieto Pato Lógico, a editora do André Letria. Bem sei que quase todas as semanas me refiro a esta casa. Como não? É uma editora irrequieta, que publica a bom ritmo; é uma editora que não deixou de me enviar livros quando terminou o Câmara Clara, ou seja, uma casa onde trabalha gente que compreende que, apesar de eu só ter neste momento um blogue para falar de livros, não deixei de ser jornalista; é uma editora que aposta em autores nacionais e, que querem?, tenho um fraco por portugueses; e o essencial: é uma editora que publica livros muito bons. Não teria que apontar razões para escrever sobre o que me vai apetecendo (a mim e ao M.); porém, é bom fazê-lo de vez em quando, antecipando eventuais comentários de quem só ocasionalmente se lembra de que afinal sou jornalista e "meu deus, que escândalo, está sempre a citar os mesmos"...

Os livros muito bons que tenho hoje diante de mim e que me têm ocupado a mim e ao M. nos últimos dias são Vazio, da Catarina Sobral, e Capital, do Afonso Cruz



Ambos pertencem à colecção "Imagens que contam", dedicada a - diz-se no site do Pato Lógico - "ilustradores contadores de histórias". Por considerar que uma ilustração contém sempre em si a possibilidade de uma história, talvez me pareça redundante a expressão, sendo que tanto a Catarina, como o Afonso são ilustradores e escritores. O que importa, contudo, reter é que estes livros dispensam as palavras para construírem uma narrativa.

Não será um acaso o facto de o André Letria andar a publicar os livros aos pares. Recordo-me de, nos primórdios do Pato Lógico, terem saído os maravilhosos, desafiantes e poéticos Incómodo e Destino, livros-desdobráveis do próprio André. 



Imagens retiradas do site do Pato Lógico.
Os meus exemplares estão na estante do quarto do M. e, 
à hora a que escrevo este post, está o rapaz entregue à sesta. 
Não lhe causarei incómodo algum.

Foram também esses os tempos dos volumes De Caras e Estrambólicos, que estou ansiosa por mostrar ao M.. Tanto quanto estou receosa: é fácil arrancar páginas ou pedaços delas...



De Caras e Estrambólicos
textos de José Jorge Letria e ilustrações de André Letria.

Gostei tanto das primeiras aventuras do Pato Lógico (em rigor, a primeira foi Domingo vamos à Luz, pela qual nutro - obviamente - especial carinho) que, estando então a meu cargo a função de editora do Diário Câmara Clara, pedi à Filipa Leal uma peça sobre estes quatro livros. Nela, o André revelou a sua vontade, os seus objectivos, ao criar a editora: "Aquilo que me interessa é poder explorar novas formas de trabalhar o que faço como ilustrador e, ao mesmo tempo, tentar perceber e aprender este caminho novo que os livros estão a tomar."

Em breve, a propósito das chamadas apps e porque o M. está a ficar fã de várias, voltarei a Incómodo, livro adaptado para uma plataforma digital em parceria com a Biodroid. Está na App Store e é gratuito (viva! viva!). Só precisam de aprender a lidar com uma mosca... (Entretanto, ficaram também disponíveis, por apenas 1,79€, De Caras e Estrambólicos).

Como seria de esperar, rapidamente se cruzaram outros autores nestes novos caminhos do André Letria enquanto editor. Por exemplo: Ricardo Henriques, responsável pelos textos do muito premiado e vasto Mar; André da Loba e Marta Monteiro em livros que saíram ao mesmo tempo, que o M. adora e aos quais me dediquei aqui; e agora Afonso Cruz e Catarina Sobral em duas crónicas contemporâneas que se, por um lado, lançam um olhar crítico sobre os nossos dias, por outro, considerando o modo como estão estruturados e desenhados, salvam-nos de sermos devorados por eles, os dias, pela sua velocidade gananciosa. Fazem-no, no entanto, de modos diferentes. O Afonso expõe-nos directamente à ameaça, coloca-nos dentro da grande e insaciável boca do monstro, mostra-nos como podem ser afiados os dentes de um porco-mealheiro sobrealimentado, isto é, do capital acumulado, adorado, tratado melhor que gente. 



A história parece-me perfeita, simulando uma estrutura narrativa clássica que tanto nos transporta para um romance do século XIX, como para um filme mudo. Afirmo-o também por conseguir reunir, em poucos desenhos, momentos que emocionam e apelam aos afectos (que beleza este instante em que rapaz e porco-mealheiro se fitam, nas margens das páginas) 



e outros que chocam e afligem (a grávida na passadeira rolante, rumo à boca do lobo, desculpem, do porco). 



O M. ficou indignado com esta fábula contemporânea. "É isto que me espera, Mãe? Maaãããããeeeeeeee, é isto? Então prefiro um pato." Rendeu-se, todavia, logo a seguir. Não conseguiu resistir a(o) Capital, a ir espreitá-lo, só para ver como funciona.



Suspirei de alívio quando percebi que o que mais lhe interessava era o sono do capitalista enquanto jovem, enquanto menino ainda sem consciência. Exclamava: "Shhhhhhh Ó-ó. M'nino ó-ó." Sim, filho, o sono dos justos.

Sublinho ainda outro aspecto, maravilhoso, deste livro, o do jogo das transparências, através do qual são sobrepostos padrões, formas, ampliando as possibilidades de leitura, a possibilidade de nos demorarmos nos desenhos. 



Se o Afonso Cruz fosse rapaz de erguer morais em vez de as questionar, daqui talvez pudéssemos retirar um grito de guerra: "Camaradas, notem bem: o capital é uma herança." Tremo: já ofereci um mealheiro ao M.. Julgo, no entanto, que estou safa. É um tijolo. Muito leve.


Mealheiro Lego.


E Vazio, da Catarina Sobral? Sendo também um retrato destes dias em que nos vemos entalados (ou enlatados) - ai, o tempo, ai, a vida moderna, que, aliás, já apareciam, como temas ou motivos, noutros títulos da autora; recorde-se, por exemplo, o recente O Meu Avô -, o que a Catarina nos oferece é a redenção, preenchendo o espaço vazio de um homem com o pequeno músculo que simbolicamente lhe/nos permite chegar (abraçar, gostar, amar) ao outro. O livro é belíssimo; todo ele cheio de pormenores - da capa à contracapa, passando pelas imagens repetidas nas guardas, que evoluem da mera figura geométrica para a figura humana, a figura de um coração humano. E pelo meio? Pelo meio, a história de um homem que passa, que vai passando - pelo espelho, pela rua, pelo consultório médico, pelo supermercado, pelo jardim, pela exposição, pela chuva... - até se cruzar com uma mulher (e quem "ler" que esteja atento ao que essa mulher leva nas mãos). O homem em quem nada permanecia, o homem que só por uns instantes conseguia guardar dentro de si aquilo e aqueles por quem passava, fica finalmente cheio de tudo aquilo de que precisa. Tudo aquilo de que precisa deixa-lhe, claro, espaço para mais. Belo, belo, belo. Chamei-lhe crónica contemporânea, não foi? Esqueçam. É um poema.




No resto, deparamo-nos com aquilo a que a Catarina nos tem habituado: o melhor da ilustração destes tais dias que correm. E de outros, parece-me que é justo arriscar: dos que já passaram e dos que estão para vir. Casas de paredes direitas, desenhadas de um modo que supostamente até eu conseguiria desenhar não fossem os apontamentos gráficos, a combinação de traços, padrões e cores, para além do bom uso da imaginação e da liberdade, que nos obriga a recordar o modo como desenhávamos na infância, sem limites, sem restrições, sem formatos... Dizia eu: casas de paredes direitas aliadas a figuras, como pássaros, carrinhos e árvores quase toscos de tão redondos, perfeitos no seu modo único de lembrar a imperfeição. Escusado será afirmar que foi com os carros, os "popós! popós!", que a Catarina conquistou o M.. O homem vazio tem agora mais um coração: o do meu filho. PIM!



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