A propósito de um brilhante artigo do Brain Pickings de Maria Popova dedicado a um livro sobre Montaigne, decidi há uns dias regressar aos ensaios do escritor.
Montaigne por Dalí.
Imagem retirada daqui.
Fui renovando os votos e só ontem consegui sentar-me a ler. Comecei pelo capítulo "Da educação dos filhos".
"Da educação dos filhos" por Dalí.
Imagem retirada daqui.
"(...) a maior e principal dificuldade da ciência humana reside na acertada direcção e educação dos filhos, do mesmo modo que na agricultura os trabalhos que precedem a plantação são simples e não têm dificuldade, mas logo que a planta nasce, para que cresça, existe diversidade de procedimentos, que são difíceis. O mesmo acontece com os homens: dar-lhes vida não é difícil, mas logo que a têm vêm os diversos trabalhos e cuidados que exigem a sua educação e direcção."
Ora, isto já toda a gente sabe. Em teoria. Repetiram-mo até à exaustão quando estava grávida. Eu ria-me e pensava "logo se vê". Todavia, apenas compreendi exactamente o que me estavam a querer dizer, que é o mesmo que Montaigne sustenta aqui, quando peguei na criança, quando a criança começou a andar, quando a criança adoeceu pela primeira vez. "Quando a criança" - está tudo aqui, naquilo que, parecendo o início de uma frase, é afinal o início de uma vida, dessa "liberdade de procurar o caminho", para usar uma expressão de Montaigne, dessa aprendizagem, para um pai e uma mãe, de não só preparar o caminho para a criança (para "quando a criança"), como de lhe dar liberdade para o procurar. Quando a criança. Sei o que é isso hoje, descubro-o e constato-o com nitidez em todos os segundos que passo com o M..
Montaigne prossegue, apresentando "a única opinião", afirma, "que professo acerca da educação, contrária ao comum sentir e uso". Traça, por exemplo, o perfil do mestre perfeito ("Não seja daqueles que descarregam nos nossos ouvidos, como se vertessem num funil, fazendo com que o nosso dever não consista senão em repetir o que nos foi dito."; "(...) é necessário que ouça o seu educando falar por sua vez."), soma conselhos ("Uma alma superior e forte sabe condescender com os hábitos da infância, e ao mesmo tempo guiá-los."; "Que o mestre não se limite a perguntar ao discípulo as palavras da lição, mas antes o sentido e a substância."), cita gregos e romanos ("Dizia Epicarmes que o entendimento que vê e escuta é o que aproveita tudo, dispõe de tudo, trabalha, domina e reuna; tudo o mais não passa de coisas cegas, surdas e sem alma."), atende não apenas à alma, mas aos "músculos" ("(...) a alma vai demasiado depressa se não for logo secundada, e tem por si só demasiado trabalho para bastar a dois ofícios."; "Endurecer-se no trabalho é endurecer-se na dor (...)"; "É preciso habituar a criança à aspereza e fadiga dos exercícios (...)"), sublinha a importância da experiência, da viagem:
"Querem ensinar-nos a bem julgar e a bem falar sem nos acostumarem nem a uma nem a outra coisa. Ora bem, para tal aprendizagem, tudo o que se mostra perante a nossa vista é livro suficiente: a malícia de um pajem, a torpeza de um criado, uma discussão de sobremesa, são outros tantos motivos de ensinamento."
"Gostaria que as viagens começassem desde a infância, e em primeiro lugar, para matar dois coelhos de uma cajadada, pelas nações vizinhas, onde a língua difere mais da nossa. É indispensável conhecer as línguas vivas desde muito pequeno, pois de contrário os idiomas não se adaptam rapidamente à pronúncia."
No artigo que comecei por citar, Montaigne é considerado um "proto-blogger", "the godfather of bloggers":
British biographer and philosophy scholar Sarah Bakewell traces “how Montaigne has flowed through time via a sort of canal system of minds” and argues that some of the most prevalent hallmarks of our era — our compulsive immersion in various forms of lifestreaming, our incessant social sharing, our constant oscillation between introspection and extraversion as we observe our private experiences more closely than ever so we can record and frame them more perfectly in public — can be traced down to this one proto-blogger, the godfather of the essay as a genre:
This idea — writing about oneself to create a mirror in which other people recognize their own humanity — has not existed forever. It had to be invented. And, unlike many cultural inventions, it can be traced to a single person: Michel Eyquem de Montaigne, a nobleman, government official, and winegrower who lived in the Périgord area of southwestern France from 1533 to 1592.
E ponho-me a imaginar o que diria Montaigne se vivesse estes nossos tempos em que as viagens se podem fazer e as línguas se podem aprender com a televisão, com as canções, com os brinquedos... Ou ali em baixo, no jardim, onde o M. brinca com meninos ingleses, espanhóis, finlandeses, croatas, romenos. Ou na creche, onde tem amigos gregos, franceses, alemães. "Guten morgen" é, neste momento, uma das expressões preferidas do M.. Tal como "Happy touch", que ouve quando liga uma aplicação do iPhone. Repete-a ao longo de todo o dia... Aliás, cá em casa, enquanto aguardamos uma herança semelhante à que recebeu Montaigne - de preferência de um familiar distante, tão distante que não haja nele um traço nosso -, conseguimos viajar para países distantes com a ajuda de criaturas assim:
uma chita que, parecendo apenas um boneco feito com restos de capulanas, é uma "cheetah", como se diz no sítio de onde o trouxeram os primos MJ, ZP, I e J; uma chita que, imitando a memória, transporta no dorso todas as histórias desses primos e dos muitos lugares por onde já passaram até chegarem à África do Sul, onde um dia os iremos visitar;
Leão Hooligans
e uma palanca acabada de chegar de Luanda nas malas da Tia Fil, uma palanca que conhece as histórias dos meninos de 4, 8, 10, 13 anos que "adoptaram" a Tia Fil na cidade onde ela nasceu e onde um dia iremos conhecê-los. Porque do mapa geográfico da Tia Fil passamos rapidamente ao dos Avós e ao dos Bisavós e chegamos às fotografias, à família, de onde nunca saímos, na verdade, seja em que ponto do mundo for.
Falho, pois, os ensinamentos de Montaigne. Estou já e sempre a falhá-los: não no que diz respeito à liberdade e à experiência, mas no que diz respeito ao passo que cito de seguida.
"(...) é opinião reconhecida por todos que não é conveniente educar os filhos no regaço dos pais; o amor destes enternece-os demasiado, e faz brandos até os mais prudentes. Os pais não são capazes nem de castigar as suas faltas, nem de os verem alimentar-se grosseiramente, como convém que se faça: tão-pouco podiam suportar vê-los suados e poeirentos depois de um exercício rude, nem que bebessem líquidos demasiado quentes ou frios, nem vê-los sobre um cavalo indócil, nem em frente a um jogador de florete ou pugilista, como ainda menos disparar a primeira arcabuzada, tudo são coisas necessárias e indispensáveis. Tais exercícios são o único meio de formar um homem como deve ser (...)."
E eu estou apenas a formar uma criança. PIM!
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