terça-feira, 1 de julho de 2014

Querer muito # 6. De barco. No Pinhal.

Arranca hoje mais uma edição do Pinhal das Artes. Os primeiros dias são para creches e jardins de infância; no fim-de-semana, a festa abre-se a famílias. Infelizmente, não vamos conseguir juntar-nos. Temos outras festas e outras actividades em Lisboa. (É sempre demasiado difícil sair desta cidade...) Mas temos também muitos amigos em S. Pedro de Moel que andarão por lá aos pinotes. "Andar por lá aos pinotes" implica pisar a caruma do pinhal, saltar por cima de troncos gigantes, fazer piqueniques, ver, ao fim da tarde, a luz descer por entre os pinheiros... E visitar todas as tendas do Pinhal das Artes; a programação está disponível aqui

Há uns tempos, escrevi um poema para os meus amigos de S. Pedro de Moel. Também por causa deles (e, sim, meus amigos, há que lembrar aquelas festas épicas cuja descrição, de tão longa, mais longa do que as árvores, nunca caberia neste blogue...) é que o pinhal é para mim tão especial.

São mais longas as árvores que os caminhos
à noite, na estrada da mata.
São, de todas, as mais longas árvores,
as da estrada que liga, pela mata,
São Pedro de Moel à cidade
onde homens fazem vidro, moldes,
e eu fiz amigos: vidros, moldes
desta vida de reparar em árvores
longas e caminhos.

São tão longas as árvores da mata
que as ouço à noite comentar como
são longas, tão longas como
os amigos, as raízes por debaixo do asfalto
abrandando os passos, os caminhos.

Devagar amo estas árvores e os amigos
e às vezes depressa, meu amor,
que me trouxeste estas árvores, estes amigos.

Por ti, como por eles, travo a fundo
na zona da raiz:
onde mais perto me alongo,
obediente às árvores,
longa longa longa até onde
me levam os amigos.


Em Lisboa, andamos ocupados a planear uma festa para o M.. Curiosamente, vai ser a caminho de S. Pedro de Moel (mais uma prova de que inevitavelmente muitos dos nossos caminhos vão lá dar), no Casal da Eira Branca, que já é também um dos nossos lugares. Tenho passado parte dos meus dias a tratar da decoração da festa. Queria muito espalhar pelo Casal da Eira Branca uma dezena de barcos destes, descobertos no maravilhoso Sisters Guild e criados por Lorena Canals e Eva Newton:




Já me conformei com a ideia de que essa viagem de barco não vai ser possível, mas, por tanto sonhar com ela, dei por mim a navegar até às paragens distantes dos meus 5, 6 anos. Estou ao colo do meu Avô Z.. Ele fuma, enquanto me faz um barquinho de papel. Eu assisto, muito atenta, sem conseguir decifrar todos os movimentos das mãos dele. Doze anos a observá-lo a construir-me barquinhos de papel e nunca aprendi a fazer um. Ficava demasiado concentrada nos dedos dele, focava-me naqueles dedos que seguravam o cigarro e ao mesmo tempo extraíam do papel um barco perfeito, sem o queimar. Fixava-me nos movimentos das mãos, incapaz de os decorar. Talvez por intuir que determinadas coisas pertencem a determinadas pessoas. E por secretamente desejar que o meu Avô Z. me fizesse barcos de papel ao longo de toda a vida. De certo modo, ele adivinhou-me: ao longo de toda a sua vida, encheu a nossa casa de barquinhos de papel. A minha vida continua agora sem esses barcos. Ainda não aprendi a fazê-los. Tentei há dias, rodeada de vozes: "É tão fácil! Como não consegues? Não há nada mais simples." Escusei-me a apontar as razões da minha falta de jeito, até porque não seria esse o caso: tendo crescido numa casa de mulheres, o meu lado despachado e prático levou-me a assumir as funções normalmente atribuídas aos homens, como mudar lâmpadas, pendurar quadros, arranjar vídeos, televisores, aparelhagens, walkmen, gira-discos, enfim, todo o tipo de electrodomésticos, carregar malas, subir aos armários, etc, etc. A família inteira sabe que eu tenho jeito. Excepto para fazer barquinhos de papel. Como fazê-los, se na rua onde cresci havia um mágico que brincava com papéis e encantava todos os miúdos, os daquela rua, os das ruas paralelas a ela, os das ruas perpendiculares a ela? Esse mágico era o meu Avô, que surge nuns versos de um poema incluído no meu livro As Coisas (ed. Abysmo)


As coisas ocas

Mais uma vez quebrei a promessa
num dia em que provavelmente me bateste.
Faltas de educação não toleravas nunca. Mas adolescentes
são bichos que desconhecem o fim e o princípio
das coisas. Prometi-te: não odeio ninguém. As feridas
(no coração, na razão) têm causas geralmente humanas,
coisas de que me arrependo. Como daquela vez
em que te atirei à cara a inversão da ordem genealógica da família.
Íamos de carro, a gata a precisar de pontos, eu duvidando da condução.
Adolescentes: bichos esquisitos. A culpa não os come
por dentro; abandona-os: coisas ocas. E um nome.
Por dentro, há um dia de árvores altas
onde vivemos: um coração olha-nos de fora
como se não nos pertencesse e o seu lugar fosse
o de um boneco trocado por namorados no São Valentim.
Daqui de longe parece-me ter pernas. Pendem-lhe do banco
onde um dia te disse que eras o mágico da rua: papéis
voavam-te dos dedos ao alcançarem a ponta das unhas.

Desse lugar avistei a infância, desse lugar
por onde agora corre um caminho que teima:
o coração é fraco, não resiste se o partilhamos
como deformação congénita. É desse tamanho
o buraco no peito.


Temo que um dia seja o M. a exclamar, à minha volta: "É tão fácil! Como não consegues fazer um barco de papel?! Nada mais simples!". Nesse momento, terei que lhe mostrar estas fotografias, terei que chamar reforços:






Pouco acrescentarei. Apenas: "Tinhas tu pouco mais de um ano e meio e passei eu semanas a construir bonecos de papel para a tua festa. Como não te lembras?!" Omitirei obviamente o facto de serem bonecos de papel com construção assistida. Ficarei eternamente grata à Mibo, inventora destes bichos terapêuticos.




Com estas escassas informações e mais uma dezena de fotografias, talvez consiga convencer o M. a assumir ele a função de encher a casa de barquinhos de papel. O Avô Z. ia gostar. Eu também. Afinal, é isto que eu quero muito. PIM!

2 comentários:

  1. LINDO!!! Talvez porque hoje estou mais sensível. Talvez porque hoje estive na Casa do Alecrim na Festa de Verão, também ela linda. É comovente ver todas aquelas pessoas atingidas pela demência tão felizes por ouvirem 'canções do seu tempo', por terem os seus mais queridos junto de si - filhos, a quem chamam pais, cônjuges a quem também chamam pais, ou mães... E por ver o carinho das pessoas que delas tratam... E por ver tantas famílias tão cheias de amor... E por me ter trazido tantas recordações, tristes umas, cheias de ternura outras, todas com uma enorme saudade. Por isso gostei tanto deste texto, Inês, por teres tamanha inteligência emocional e o saberes transmiti-lo tão primorosamente. É tão bom ler-te!

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