As estantes cá de casa são bem frequentadas. Pelas palavras e pelas imagens que as habitam. E, por maioria de razão, pelas mãos que escreveram e desenharam as palavras e as imagens que as habitam. Há que acrescentar as mãos que lêem essas palavras, que vêem, demorando-se, essas imagens - mãos que puxam os livros das estantes e os vão passeando por outras casas, por outros móveis, por outras cidades, de metro, de carro, de comboio, de avião...
Por vezes, essas mãos sofrem. Julgam que determinado livro está em determinado sítio. Procuram-no uma vez, duas, três, insistem num só lugar por terem a certeza de ser aí a habitação desse livro. Insistem. Insistem. E voltam a insistir. Desconfiam da possibilidade da ausência. Passados dias, o livro aparece dentro de um saco de viagem. Ou no minúsculo espaço que, na cama, separa a cabeceira do colchão. Talvez alguns livros gostem de se esconder para sublinhar, em quem os está a ler, a dependência. Pode ser crueldade. Ou insegurança. Ou vingança (se me sublinhas, também te posso sublinhar). Dependerá do (peso e do feitio do) nome que carregam na capa.
Noutros casos, as mãos sofrem por pertencerem a um corpo onde existe uma cabeça que imagina que determinado livro está em determinado sítio. É a situação que, neste momento, enfrentam as minhas mãos: elas pertencem a um corpo onde existe uma cabeça que, por ter lido algures (às portas de outra cidade ou de outra estante?) um determinado livro, imaginou que esse determinado livro habitava a estante do quarto do M.. As minhas mãos andam há dois dias a sofrer. E, apesar de desconfiarem de uns olhos que pertencem a uma cabeça que pouco mais sabe fazer do que imaginar, resolveram pedir-lhes ajuda, aos meus olhos, disseram-lhes: passem com atenção, não se distraiam, fixem-se nos títulos, passem por eles com calma, passem pelos títulos das estantes onde estão alinhados os livros de autores cujos nomes começam por O. e por G.. O de Ondjaki. G de Gonçalves, António Jorge.
Dois dias não tanto armadas em detectives, mas em espiãs, estas minhas mãos. E nada. Uma Escuridão Bonita não vive cá em casa. Só mesmo na minha cabeça, onde há uns tempos os meus olhos e as minhas mãos ajudaram a que a conhecesse, a essa história delicada e emocionante, que, enquanto lemos - cada letra um ponto luminoso no negro da página, cada ponto luminoso uma possibilidade a abrir-se -, desejamos que seja só nossa e, por isso, desejamos lê-la num sítio escuro, de difícil acesso, para podermos assim secretamente desejar vivê-la, para podermos assim revivê-la o mais próximo possível do momento em que realmente a vivemos. E aproximamo-nos cada vez mais, como num sonho; quase, quase, quase conseguimos integrar-nos, pele e carne, nessa "escuridão bonita". Está lá escrito: "Empresta-me os teus lábios". Quem o pede sabe que o caso não é de empréstimo, é de dádiva. O mesmo se passa à volta do livro, no exterior da história, na história em torno da história: Ondjaki e António Jorge Gonçalves não emprestam este volume negro aos leitores, eles oferecem-no.
Eu folheei o livro (onde?), eu observei as imagens (onde?), eu andei para trás e para a frente neste bela escuridão (onde?), eu fixei aqueles olhos-pontos-luminosos a páginas tantas (onde?), eu sentei-me e li a história (onde?), eu deixei que da cabeça a história chegasse ao coração (onde?), eu trouxe a história comigo (de onde?), eu caminhei com ela até aqui, até agora. E falo hoje deste livro que devia estar nas minhas estantes - sabem-no as minhas mãos, os meus olhos, a minha cabeça, o meu coração - por estar há dois dias à procura dele. Foi há dois dias que o Prémio Nacional de Ilustração foi atribuído ao António Jorge Gonçalves pelo seu trabalho nesta obra.
(Houve duas menções especiais, que também nos deixaram felizes: uma para o João Fazenda, pelos desenhos criados para O pai mais horrível do mundo, de João Miguel Tavares; outra para a Yara Kono, pelas ilustrações de Uma Onda Pequenina, com texto de Isabel Minhós Martins. Parabéns a ambos!)
Muitos parabéns, António! Sou tua fã, tu sabes, e por isso vais perdoar-me esta saída repentina, havia ainda muito a acrescentar, eu sei, contudo, não me posso alongar mais, vou ter que sair. Tenho mesmo que sair. Deixa-me só dizer-te que, se encostares bem o ouvido a esta "página", talvez consigas ouvir o M. cantar-te os parabéns, não perde uma oportunidade, sobretudo quando é merecido. Agora, vou sair a correr, tenho que ir depressa a uma livraria. PIM!
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