terça-feira, 17 de junho de 2014

Gosto tanto de ti que, se soubesses, abusavas.

Eu hoje não acordei assim.



Mas por volta das 9 da manhã estava assim.

Assim, como a foto toscamente ilustra e para o que aqui importa, equivale a ter no braço marcados oito dos dez dentes do M.. 

O meu filho é um anjo. É lindo de morrer. Tem um sorriso incrível. Até quando está de trombas e nos faz imaginar ainda mais intensamente o seu sorriso. Está quase todo o tempo feliz, na sua "alegre inconsciência", qual ceifeira que "canta como se tivesse/ Mais razões pra cantar que a vida". Com a sua interminável energia, canta, sim, e dança, corre, sobe as escadas e vai atirando beijos e chamando por nós e nomeando as suas coisas preferidas: "papá, mamã, vó, vô, tita, pavão, cão, gato, popó, mina mamã, pai, mãe, pai, mãe, pai, mãe, mina mamã...".  Antes de isto tudo acontecer, excepto a parte do ser lindo porque é-o desde o primeiro minuto, "que bebé tão bonito, que giro, é mesmo giro" foram as primeiras palavras da minha obstetra assim que o tirou de dentro de mim, antes disto tudo acontecer, foi um recém-nascido perfeito: com um mês e meio, começou a dormir toda a noite, 8, 10, 12 horas, sempre comeu bem, nunca adoeceu (só depois de ter feito 1 ano), se chorava era por estar realmente qualquer coisa errada, qualquer coisa a causar-lhe desconforto, não fazia birras, deixou a chupeta por iniciativa própria...




Agora, o meu anjo morde. E dá estalos valentes na cara das pessoas. E nas pernas. Até nas pernas dos móveis. Mesas de jantar, mesas de apoio, cadeiras, sofás, camas, nada escapa à sua mão pesada. Eu e o P. somos aprendizes na arte de lidar com este pequeno mestre da manipulação, este pequeno mestre, gigante na sua inconsciente sabedoria, um minúsculo mestre que não conheceu a minha Avó M.O. e que, no entanto, cumpre rigorosamente o que ela nos repetia (recorda-me neste momento a minha irmã por sms, enviando-me as palavras da nossa Avó, fazendo suas as palavras dela para mas dar a mim), enquanto nos coçava as costas com as suas unhas compridas, arredondadas nas pontas, pintadas com verniz rosa pálido nacarado: "Gosto tanto de ti que, se soubesses, abusavas".


A minha Avó M.O. com 8 anos.
Benguela, 1924.

Eu gosto tanto do M. que ele sabe e abusa. O meu amor por ele é uma enorme coisa, uma coisa mesmo, com densidade corporal, um corpo mesmo, que às vezes se mete entre nós de tão descaradamente visível, palpável. O M. finta esse corpo e chega então ao meu, muito mais pequeno e vulnerável. Hoje de manhã foi para o marcar com os dentes. Não lhe apetecia mudar a fralda, uma fralda que já rastejava pelo chão de tão cheia, parecia uma cauda redonda e branca, uma espécie de animal de estimação que o seguia para todo o lado. Há uma semana, outra mordidela deixou-me com uma nódoa negra e um pequeno inchaço durante dias. E eu pergunto-me, pergunto ao P.: "Ele quer realmente magoar-nos?". Tentamos tudo: "Nós não mordemos, damos beijinhos" e beijamos-lhe a cara, os braços; "Nós não batemos, damos festinhas" e passamos-lhe as mãos pela cara, os braços... Tentamos também cantar, dançar, distraí-lo, mostrar-lhe um livro, um carrinho, ir à rua passear, em suma, ajudá-lo a libertar os demónios. Deixamos que, com os nossos, seja o zodíaco lidar, espalhando pela família que "ele é escorpião com ascendente em touro, os dois signos mais teimosos do zodíaco." Está explicado. Podemos dormir melhor. Nem por isso. Os estalos regressam. E as mordidelas. "Ele quer realmente magoar-nos?", de novo. E experimentamos pô-lo de castigo. Parece-nos que não percebe a punição. Vamos buscá-lo ao castigo. E levamos outro estalo. "Manel, ai, ai, não se faz isso. Isso faz dói-dói à mamã, ao papá. Não, não, não, não, não." Ele ri-se, repete "ai, ai, ai", não liga nenhuma ao discurso e vai à vida dele, a cantar na sua "alegre inconsciência".

Hoje de manhã, eu fiquei furiosa, berrei porque me doeu, mas ignorei. Mudei-lhe a fralda, numa espécie de luta entre mim, o M. e o gigantesco corpo que é o meu amor por ele e que por ali andava, meio zonzo, aos trambolhões. O M. seguiu com o P. para a creche e eu sentei-me à frente do computador a trabalhar. Recebi um boletim da Dodot. Anunciava-me que o M. já tem 19 meses. Sim, eu sei. Os boletins da Dodot e do Baby Center são uma espécie de Deus: aliam factos e sabedoria. E auxiliam-nos nos momentos de desespero, como se ouvissem de facto as nossas preces. No fundo, sem pedir nada em troca, a não ser que lhes continuemos fiéis, oferecem-nos palavras e sábios conselhos, alguns em código, tal e qual como numa homilia, tentando assim fornecer-nos semanalmente os instrumentos que nos vão permitir manter viva a esperança de um dia nos tornarmos melhores pessoas. Comunicava-me, então, a Dodot esta manhã: "O seu bebé já tem 19 meses". E acrescentava, prometendo: "Tem um bebé com temperamento difícil? Pouco a pouco, conseguirá acalmá-lo." Foi alívio, senhores, o que senti. Puro alívio. E segui para a secção de auto-ajuda, "Como ajudar os bebés agressivos?", um pouco contrariada e chocada com o adjectivo usado, "agressivo? o meu anjo é agressivo? então mas não é apenas um caso de temperamento difícil, temperamento difícil e superável? agressivo, o meu anjo?".




Eis então as respostas. Que eu já tinha lido nos manuais, que eu já tinha ouvido ao pediatra e às educadoras, que eu intuitivamente já sabia, mas que precisava de ouvir esta manhã:

"Não se surpreendam se, de repente, o vosso amistoso bebé começar a bater nas pessoas. Muitas crianças desta idade começam a comunicar os seus sentimentos sob a forma física."

O meu amistoso bebé. O meu amistoso bebé daqui a pouco regressa da creche. Vai dar-me um abraço e um beijo quando me vir chegar ao jardim do colégio. Depois, vai começar a exigir pão. Passaremos pela padaria. Se não houver o pão integral que lhe dou, vai gritar "pão! pão! pão!". Vou dar-lhe uma bolacha. E se calhar vou receber uma chapada, um valente estalo, como quem atira de modo abrutalhado: "Mas foi isso que eu pedi?!" 

Tentarei a via dos patos, do triciclo. Há-de esquecer a bolacha. E eu o estalo. De qualquer forma, vou deixar a casa pronta para o receber com livros. Fica sempre muito intrigado quando lhe mostro um livro novo. Hoje, recebi dois e, no momento em que abri os envelopes que o carteiro me passou para a mão, logo, logo aí, esqueci a mordidela matinal, ansiosa que fiquei por partilhá-los com o meu amistoso bebé. Ainda por cima, o meu amistoso bebé adora dizer "nariz". E um dos livros é uma adaptação do genial O Nariz, de Gogol. O texto é, pois, uma obra-prima, daquelas coisas que "digam o que disserem, (...) acontecem - raramente, admito, mas acontecem..." E as ilustrações, de Evelina Oliveira, relacionam-se com o texto como o nariz do major Kovalyov se relacionou com o seu rosto quando a ele voltou, instalando-se intacto no sítio devido depois de se ter andado a passear.


O Nariz, de Nikolai Gogol,
il. de Evelina Oliveira, ed. Barca do Inferno.



O outro livro que me enviaram, Desencontros, de Jimmy Liao, não sendo ainda para a idade do M., vai deixá-lo muito feliz. Basta olhar para a capa: duas bicicletas. 

Desencontros, de Jimmy Liao,
ed. Kalandraka.

Lá dentro, há imensas coisas para descobrir. Por exemplo, dias de céu limpo em que ela e ele, ao saírem de casa, viram para lados opostos. 



Não li ainda o livro todo, mas o facto de abrir com uma citação de Wislawa Szymborska dá-me uma vontade imediata de abraçar o livro e fugir algures para um dia de Novembro em que "À meia.noite, a fria luz da Lua atinge de azul um canto da varanda.":




Estão ambos convencidos
de que uma súbita paixão os uniu.
É bela essa certeza mas a incerteza
é ainda mais bela.

Eis-me de novo com a minha Avó: "Gosto tanto de ti que, se soubesses, abusavas." Se soubesses. A incerteza. Tão bela. 

Belos são também aqueles que sabiamente desconfiam dela. Como esta menina, apanhada por Brandon, responsável pelo incrível e inesgotável Humans of New York.

Imagem retirada daqui.
"Do you know what you want to be when you grow up?"
"A person."

Desconfio de que o M., se falasse, se soubesse, responderia assim. PIM!

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