Podia adoptar a pose da criatura indiferente, para quem o "é a vida, o que é que se há-de fazer" serve para tudo, até para viver, mas confesso que me custa que os meus sobrinhos, quase todos, parece-me, tenham mais afinidades com números do que com letras. Uma letra é uma coisa ("as palavras são coisas", defendia o Manuel António Pina) infinita. Muito mais do que um número. Falo com o coração, como é óbvio; a razão interessa-me menos. Como os números, aliás. Os números assinalam os dias, ajudam-nos a compreender e aceitar que o tempo passa, dão-nos quantidades. Atenção: eu gosto de matemática e de "desmatemática", para regressar ao M. A. Pina; gosto de equações e de problemas. Que não se ofendam os matemáticos com as minhas singelas declarações. Porém, as minhas medidas são as da qualidade e ofereço resistência à passagem do tempo. A concepção da temporalidade que me importa assume a forma de um círculo e não de uma linha. Por isso, aquilo de que gosto mesmo é de histórias que não têm princípio, meio e sobretudo fim. Por isso, aquilo que me fascina é o momento - fora do tempo - em que me escapa a solução. Por isso, aquilo de que gosto é de poesia. O que é o mesmo que afirmar que gosto de possibilidades. E de livros que não se encerram, nem nos encerram. Gosto de livros assim:
Já aqui falei do belíssimo Hoje Sinto-me..., de Madalena Moniz, editado pela Orfeu Negro. Chamei-lhe um abecedário de coisas, sentimentos e sentidos. Nele, parte-se das letras do abecedário para se chegar a uma palavra para se chegar a um desenho. Mas nem a palavra nem os desenhos se apresentam como destinos, como finalidades, como soluções. São novos pontos de partida - belíssimos, comoventes, emocionantes - para construirmos mais: significados, histórias... Estamos no território instável do infinito - e os únicos limites que enfrentamos são os da nossa própria linguagem, os da nossa própria imaginação e os dos nossos próprios sonhos.
Esta "lição" aprendi-a (e continuo a aprendê-la) com quem nunca ma quis dar. Com quem nunca apreciou realmente uma "lição" e, no entanto, sempre foi mestre. Dou alguns exemplos: o Álvaro Magalhães, o João Paulo Cotrim, o Pina, que passou a tarde de ontem comigo e com o meu sobrinho F..
O F. tem que apresentar um trabalho sobre Os Piratas, livro de 1986. Protagonizado por um rapaz de 8 anos, o Manuel, conta uma história em que a realidade se confunde com o sonho, o passado com o presente, o eu com o outro. Nada é definitivo e nada se pode afirmar com absoluta certeza. Uma autêntica aventura piniana, com possibilidades infinitas de leitura.
A mais recente edição d'Os Piratas (Asa), já esgotada, nas mãos do F. |
Passei a tarde entusiasmada a partilhar a biografia, a bibliografia, as histórias do Pina com o F.. E os temas da obra, as obsessões, os modos de contar, etc, etc... O F. insistia: "Mas não estou a perceber bem o que aconteceu no fim.". E eu repetia: "Isso não interessa." E ele defendia-se: "Interessa, sim! Vou ter que convencer os meus amigos a lerem o livro!"
É o objectivo do trabalho: "convencer". O "objectivo"... Tenho mais medo disso do que do escuro... E tenho uma enorme dificuldade em perceber como conseguem os miúdos (muitos deles) passar horas agarrados à Playstation e ao iPad e não conseguem concentrar-se a ler um livro de aventuras. Talvez porque o jogo tem um "objectivo" - que se cumpre ou que se falha. E mais hipóteses não há. Estamos a ficar formatados para o fim, agora que o ultrapassámos a grande velocidade. Qualquer dia nem a morte tememos.
A minha amiga Filipa Leal costuma dizer que os nossos tempos se caracterizam por uma enorme crise da imaginação. Conseguimos acreditar no absurdo, mas só se o contexto for o do humor (e a Filipa conta, neste momento, a anedota da formiguinha e do elefante no cinema). Ora, esta obsessão pelo riso, pelo humor, tem também a ver com o medo. A frase é de Bataille (e eu recebi-a via Pina): "Ris-te porque tens medo". Temos medo, sim, da ausência de um fim - certo e contabilizável. E eu tenho medo que os meus sobrinhos tenham medo disso mesmo. Gostava que apreciassem as coisas inúteis da vida - como a poesia, a literatura, que é também jogo, mas livre. É, pois, natural que me tenha rido à gargalhada quando o Francisco, ao reler comigo o último capítulo d'Os Piratas (misterioso, intrigante, tão bom e desafiante que me lembrei dos livros da Ana Teresa Pereira, os que escreveu "para" adultos, claro), se saiu com esta: "Tia, tens a certeza de que não há um Piratas Parte II?!".
Chamei-lhe pirata. Estava a pilhar a minha imaginação. E a minha fé. Estava a impôr-me um fim. PIM!
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