terça-feira, 20 de maio de 2014

Irmãos. Ou: O Caminho de Casa.

Ele tinha dois amores. Eu tenho dois irmãos. E por isso tenho necessariamente mais do que dois amores. Porque já somos crescidos (ou fingimos ser) e já criámos pequenas famílias, pequenas ilhas, dentro do arquipélago que é a nossa família. Sobre os meus irmãos, não posso dizer "um é loiro, outro é moreno". Ambos são loiros. E parecidos: no tom de cabelo e no de pele, nos movimentos das mãos, no modo como se afligem com as pequenas coisas, no modo como se controlam nas grandes aflições.
Sobre os meus irmãos, vou escrevendo aqui e ali. As minhas histórias contam-se com eles. E por causa deles. Não teria atravessado a infância e a adolescência sem a protecção da minha irmã, cinco anos mais velha do que eu. Ou teria, mas com mais feridas. Das que não saram. Foi ela que recuperou o meu walkman quando um miúdo da escola mo roubou; foi ela que se tornou uma lenda lá na rua quando ameaçou nem sei bem de quê o outro miúdo que me esfregou uma malagueta na cara. Em suma: foi ela quem nunca se esqueceu de me pôr creme na praia para me proteger a pele de escaldões. 



A minha irmã fez há uns meses 40 anos. Ofereci-lhe dois presentes radicalmente diferentes (um era loiro, outro moreno): uma festa-surpresa e um poema dentro de uma caixinha branca onde estavam também quarenta fios dos meus cabelos. Divertimo-nos muito na festa. Quanto ao poema:

Quarenta fios de cabelo


Sei-a exageradamente branca,
exageradamente funda,
exageradamente
rendida ao modo de prolongar as sílabas da palavra exagerada
quando por vezes te ouço dizer as coisas que nem a mim me cabem
no pensamento. Todavia talvez guarde exageradamente
essas coisas dentro e fora dos meus pensamentos: um coração, uma casa, uma parede
escavada de túneis para os meus e os teus exageros.
Essas coisas, estas coisas, as coisas deles:
minúsculos corações
abrindo-se e fechando-se,
abrindo-se e fechando-se,
abrindo-se e fechando-se
coincidentes com os primeiros sons do mundo,
as barrigas encostadas às costas, deitadas sobre o tempo.
Guardo essas coisas exageradamente, sussurrando preces, por vezes soletrando;
guardo-as numa caixinha exageradamente branca,
exageradamente funda,
exageradamente
nossa: quatro paredes tecidas para protecção
de quarenta fios de cabelo.

Os meus cabelos. Um por cada ano de que se soltou o tempo.

Insisto exageradamente,
como sabes, minha irmã, minha amiga, meu amor,
em confundir o tempo,
em repeti-lo como se eu mesma o pudesse reescrever,
em repeti-lo em modo de advérbio: assim, exageradamente.
Que te sirvam também para isso os meus cabelos.
Para ti, que tanto duvidas, que tanto suspeitas, sejam os meus cabelos: quarenta fios,
fortes até a escutar o tempo, quarenta fios exageradamente longos, bem sei.
Peço-te hoje: repara neles, fita-os um a um, enfrenta-lhes a metafísica:
lê-os em silencioso código (eu, tu);
lê-os em duração (dois avôs, três avós, pai, mãe);
lê-os entretanto (esta irmã, um irmão, e um marido, um cunhado);
lê-os após (um filho, dois, um sobrinho: três filhos).
Chama-lhes família.
Deixa que seja eu (a aprender) a chamar-lhes amor. Tu sabes:
eu pronuncio sempre tudo. Tu sabes:
eu pronuncio sempre tudo
exageradamente.

E, no entanto, sem exageros, peço-te hoje: repara neles apenas
contra o esquecimento.

Exageradamente, já to disse, sou eu só, e os cabelos
a confundir a espera: quarenta fios dentro da caixinha branca,
menos, muito menos, do que a quantidade de cabelos que te arranquei
quando?
Quando me pressionavas contra o peito.
As minúsculas mãos presas aos cabelos.
O minúsculo coração coincidindo.
A minúscula vontade de testar.
Nesse imponderável tempo, alguém (talvez eu)
acumulou certezas. Uma delas, noutra caixinha:
menos exagerada, menos branca, menos nossa.
Durante muitas casas, ficou ali guardado o corpo
de um passarinho morto, só esqueleto.
Mais que isso seria exagerado. Como seria exagerado
chamar-lhe luto, enfrentar-lhe a metafísica: a morte inscrevendo-se
a favor do tempo.
Mas, minha irmã, minha amiga, meu amor: disto tudo te curem os cabelos.
Os meus cabelos, que não morrem.
Que não falam.
O que falta é que fala.

Devia exageradamente
não ter, para ti, uma única palavra;
devia exageradamente
caber dentro da caixinha branca, funda:
eu e a promessa de nos curar do tempo,
cobertas por quarenta silenciosos fios
de cabelo.


Não teria também crescido sem a consciência de que, de repente, sem aviso, podem surgir seres mais pequenos e frágeis do que nós. O meu irmão tem agora 30 anos, menos cinco do que eu. Nasceu prematuro. Partilhei essa história há uns meses, no Facebook, quando ele chegou aos trinta. No fundo, o que eu queria era oferecer-lhe a história dele no momento em que se cruzou com a minha. Escrevi então:


O meu irmão faz hoje 30 anos. Nasceu de 6 meses, no início dos anos 80. Pesava 900 gramas. Menos do que um pacote de farinha. Menos do que um pacote de açúcar. Menos: menos unhas, menos volume. Menos. Uma ruína no princípio do mundo.
(Ainda hoje o pediatra que o seguiu lhe chama "o bebé milagre".)
No dia em que o vi pela primeira vez, não cheguei a ficar aflita. Volta a reminiscência e descubro-me desconfiada diante da incubadora, questionando silenciosamente "é isto um irmão mais novo?".

Poucos meses depois, o meu irmão mais novo engordou, ganhou pulmão. Poucos anos depois, o meu irmão mais novo era o meu Zorro. O meu Lucky Luke. O meu Tintin. O meu He-Man. (Conforme os desenhos animados, os livros e o Carnaval.) E, no entanto, sempre muito mais certo e real do que naquele primeiro dia de Outubro de 1983.

Falo dos meus irmãos porque o grande acontecimento do passado fim-de-semana foi termos conhecido a Mat., o novo bebé da nossa família alargada, onde estão incluídos os nossos melhores amigos. Esses amigos são, de certo modo, irmãos. O que significa que, neste momento, o M. tem quase uma centena de primos. A mais nova - por agora; há mais a caminho! - é a Mat., a minúscula Mat., linda, com aquelas mãos em que os dedos se alongam para lá do seu próprio tamanho. A Mat. tem um irmão mais velho, o P., que está quase a chegar aos 3 anos. E se a Mat. foi o grande acontecimento dos últimos dias, o modo como o P. a acolheu, como a trata, como lhe quer dar um copo de leite, como questiona a razão por que ela chora, como lhe pega ao colo, não é um acontecimento menor. A Mat. já é feliz e ainda nem sabe. Haverá maior conforto?



Saí da maternidade a pensar nas mãos dos meus irmãos. E a desejar poder um dia dar um ao M.. Para isso, ele tem que aprender a subir sozinho as escadas que nos levam até ao nosso terceiro andar sem elevador. Que é como quem diz: tem que aprender o caminho de casa. PIM!

NOTA: A banda sonora perfeita para este post está aqui, no Vidro Azul, do Ricardo Mariano, mais ou menos a meio. Mas vale sempre a pena ouvir a emissão completa. 

2 comentários:

  1. Obrigado Inês. Agora vou chamar a Pat para ler isto. E pôr um kleenex ao lado do rato.

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    1. Faz-lhe cócegas que isso passa. Ou pede ao P. para dizer: "Calma, Magali!" Ahahah ;)

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