quinta-feira, 29 de maio de 2014

Nomear.

Bem sei que prometi escrever toda a semana sobre Paris. Hoje seria o dia de espreitar a infância de Robert Mapplethorpe. E talvez ainda possa ser. Porque, na verdade, o que me apetece hoje, graças à partilha que o Luís Quintais fez no Facebook de um artigo do The New York Review of Books, é passar pela América. Ora, o Robert Mapplethorpe é americano, apesar de ter sido em Paris e, antes disso, em Berlim que passei longas horas a ver as suas fotografias.

Mapplethorpe no Grand Palais, Paris.

Mapplethorpe é o desconstrutor por excelência. De expectativas, de caminhos traçados a régua e esquadro. Era um homem livre. Que se movimentava fora das quatro linhas. É certo que, num blogue dedicado a criações para a infância, eu devia era falar de Bob, o Construtor. Mas o pobre e entediante Bob não me intriga; pouco sabe ele da infância, sempre a trabalhar, certo nos seus horários, revelando-se um funcionário orgulhoso no cumprimento da jornada. Para além disso, ainda não fascina o M.. E vamos rezar para que as coisas se mantenham assim. As minhas esperanças aumentam quando o M., em vez de pegar nos Mega Blocks para construir lindas pontes e harmoniosas cidades, os amontoa apenas para os destruir, para os lançar em voos rasgados pelos baixos céus cá de casa, atingindo jarras e molduras e assim os desdobrando em peças fundidas com outros materiais. Ou quando insiste em transformar a garagem dos carrinhos da Imaginarium numa cabana de leão. Ou quando insiste com o Tolo para que experimente novos movimentos, para que experimente pôr-se de pino. Para o M., o tamanho não importa. Nem a função das coisas, o motivo por que foram criadas, o nome com que as fecharam à chave num só propósito.



Leão oferecido pelos primos que vivem na África do Sul. 
É o boneco mais giro do mundo, feito com capulanas.
Brinquedos Imaginarium e Tolo. Calças Phister & Philina na Boozt. T-shirt Zippy.

Essa atitude, característica da infância, mantém-se intacta em muitos artistas. Não é tanto a bolorenta história do condescendente "quem me dera ter a tua idade, sabendo o que sei hoje"; é, sim, aquela "segunda e mais perigosa inocência" nietzschiana que Manuel António Pina recuperou nos seus poemas ("Quem desenterrá o que é preciso esquecer?"), colocando-a em diálogo com o Evangelho de Marcos ("Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á"). Neste território - fatal - move-se Mapplethorpe, ele que cresceu em ambiente seguro, que foi um "Catholic boy", como descobri em Paris, uma criança que ia à missa semanalmente e que disso retirou não a moral mas um certo modo de ordenar o seu mundo, de o desorganizar para lhe dar novas regras: "It still shows in how I arrange things. It's always little altars." "Little altars" - lugares de culto, lugares dessa religião sem fé que pode ser a arte. 

Robert Mapplethorpe e Manuel António Pina, os criadores que citei, estão ambos mortos. Ontem, uma das últimas coisas que escrevi, a propósito de uma curta-metragem sobre o Pina que espero um dia conseguir acabar, foi esta frase: "Um poeta só morre no dia em que fecha os olhos o seu último leitor." Hoje, uma das primeiras coisas que li foi este belíssimo epitáfio, estes dois belos epitáfios partilhados pelo Luís Quintais no Facebook. São homenagens escritas pelo poeta Charles Simic a dois dos seus "irmãos": Russell Edson (1935–2014) e Bill Knott (1940–2014).

Li o artigo e fiquei com vontade de suspender tudo o resto - as obrigações, os horários, a vida lá fora - para me pôr a ler mais poemas destes dois autores. Eu, que não sou responsável como o Bob, o Construtor, lidaria bem com esta minha opção. Veremos o que acontecerá daqui em diante. Posso sempre culpar este poema do Bill Knott:

Mother’s List of Names 
My mother’s list of names today I take it in my hand
And I read the places she underlined William and Ann
The others are my brothers and sisters I know
I’m going to see them when I’m fully grown
Yes they’re waiting for me to join em and I will
Just over the top of that great big hill
Lies a green valley where their shouts of joy are fellowing
Save all but one can be seen there next a kin
And a link is missing from their ringarosey dance
Think of the names she wrote down not just by chance
When she learned that a baby inside her was growing small
She placed that list inside the family Bible
Then I was born and she died soon after
And I grew up sinful of questions I could not ask her
I did not know that she had left me the answer
Pressed between the holy pages with the happy laughter
Of John, Rudolph, Frank, Arthur, Paul
Pauline, Martha, Ann, Doris, Susan, you all,
I did not even know you were alive
Till I read the Bible today for the first time in my life
And I found this list of names that might have been my own
You other me’s on the bright side of my moon
Mother and Daddy too have joined you in play
And I am coming to complete the circle of your day
I was a lonely child I never understood that you
Were waiting for me to find the truth and know
And I’ll make this one promise you want me to
I’m goin to continue my Bible study
Till I’m back inside the Body
With you

Quem tiver hoje marcado algum encontro comigo, fica a saber que, se não aparecer, a culpa é do poema. De um poema sobre a infância, escrito lá em baixo, algures onde jaz "uma segunda e mais perigosa inocência". Um poema em que se diz em voz alta o Nome. PIM!

Sem comentários:

Enviar um comentário