quarta-feira, 28 de maio de 2014

Perdidos e achados.

Paris começa a transformar-se em memória. Chegámos há três dias e o tanto que já fizemos acrescenta distância à distância a que estamos daquela cidade. Esquecerei entretanto muitas coisas (nomes de ruas, o sítio onde comi aquela sobremesa que julgava inesquecível, o movimento do rapaz que passou por mim de skate e cuja velocidade consegui rudemente fotografar); outras guardarei para sempre. Assim o espero. Um desses casos é a série «Le mystère de l'enfant perdu», de Henri Cartier-Bresson, incluída na exposição patente no Centre Pompidou. Ao contrário dos comentários que ouvi enquanto a visitava, não a achei banal nem pouco surpreendente. O trabalho de um génio, nem quando mal organizado - o que não é de maneira nenhuma o caso -, cai nessa desgraça. E como não gostar de atravessar todo o século XX guiado pela objectiva de Cartier-Bresson? Não entendo as críticas. Talvez seja esta minha mania de, por tanto abraçar o meu pessimismo, conseguir contorná-lo, aprendendo assim a evitar a todo o custo o cinismo. Manias, dizia eu. E, no entanto, a possibilidade da surpresa.

Lettre d'Henri Cartier-Bresson à sa mère, vers 1920
Tinha o fotógrafo uns 12 anos.

Uma das surpresas da exposição encontra-se numa parede forrada por mais de 30 capas da revista Ce Soir. Em todas elas, rostos de crianças. De quem foi criança nos anos 30 do século XX. E os rostos, sempre diferentes, sucedem-se, repetem-se, formando labirintos ou, se de música se tratasse, formando uma lenga-lenga infantil capaz de encantar - ou de entorpecer - "gente crescida". São olhares, sorrisos, esgares, caretas, expressões, gestos de meninos e meninas que formam «Le mystère de l'enfant perdu». E, por baixo deles, um aviso: Les passants qui reconnaissent, sur cette photographie, le portrait de leur enfant, n'auront qu'à se présenter, avec l'enfant et leurs pièces d'identité, à nos bureaux, avant le 31 mars inclus. Ils recevront une somme de 200 francs et leur photographie.





Cartier-Bresson não fotografou realmente nenhum "enfant perdu". Todas as fotos foram tiradas ao acaso, na rua. Traçou um mapa da infância - dos seus possíveis rostos num determinado tempo, num determinado lugar. Inventando crianças perdidas encontrou um caminho possível para a infância, que é também o da disponibilidade e o da curiosidade diante de um estranho. Escusado será falar do risco. E escusado será acrescentar que hoje nada disto seria possível. Ou talvez seja; veja-se o exemplo do incrível projecto Humans of New York, sobre o qual gostava em breve de escrever aqui. De qualquer forma, as regras são outras. E o jogo também.

Tudo isto me conduz ainda a outros caminhos que levam à infância. "Um verso, um rosto, uma tarde outonal algures na infância" - coisas que habitam as crónicas do Manuel António Pina, às quais regressei em Paris por causa de um outro cronista, o Nuno Costa Santos. Hoje, ao fim da tarde, no POVO (Cais do Sodré) juntar-me-ei ao Nuno para conversar sobre o seu novo livro, Vou emigrar para o meu país (ed. Escritório). O Nuno gosta de usar todas as palavras, cultiva-as todas com a mesma dedicação; no seu vocabulário, entram, sem entraves, muitas das que hoje se temem: amor, por exemplo. E coração. Escreve sobre o medo e sobre a insónia; escreve enquanto os filhos brincam ("Vejo, aqui ao lado, no tapete da sala, os meus filhos no regabofe infantil e desejo, enquanto os vejo brincar, que lhes seja permitida essa liberdade maior de guardarem, anos fora, este instinto lúdico, esta vontade de fazer disparates, estes tropeços de criatividade."); escreve com humor; escreve prescindindo, também ele, do cinismo. É um discípulo - e afirmo-o porque ele sente falta de mestres - do Pina e do Assis, do O'Neill e do Drummond. E é uma criança eterna. Por isso, hoje ao fim da tarde, vai ser uma brincadeira de meninos. Até menina entra. Eu mesma. Ou a outra, ainda não sei. Espero que alguém se espante. PIM!

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