terça-feira, 13 de maio de 2014

Pó de estrelas. Para ressuscitar estrelas do mar.

Durante o fim-de-semana passado, com os vírus ao ataque, aproveitei os momentos em que conseguia mexer-me e/ou em que o M. estava a dormir as suas sestas para fazer arrumações. Tinha os livros no estado caótico do costume. 



E tenho. E continuarei a ter. Só consegui pôr em ordem os do M., os tais que também são meus (ou foram) e que deixam em pânico quem nos visita por estarem tais preciosidades à mão de sua excelência, o "pequeno bulldozer". É um dos petits noms do M., cuja curiosidade e cujo infinito espanto perante o que vai descobrindo o levam a mastigar páginas de revistas com imagens de comida ou a arrancar bocados de livros onde aparecem cães, elefantes e popós, um possível TOP 3 das suas coisas favoritas. Até lhe comprei, há uns meses, no meu regresso de Macau, nesse regresso em que desesperava de saudades, um livro que se chama Little Bulldozer. Eis um exemplar que não me importo que morda, que puxe, que suje de papa: é feito de pano e um dia será herdado por alguém. (Ou não: I'm a keeper... E este livro assinala um tempo, um lugar. Ou dois. Porque não estávamos juntos.) 

Little Bulldozer da Read & Play

Fico sempre com dores de costas e ataques de alergia quando me dedico às arrumações dos livros. Todavia, vale sempre, sempre a pena. Mesmo que descubra que a minha memória está pior do que nunca, encontro com frequência alguma pequenina coisa que sabe tão bem recordar que até faço vénias ao esquecimento. E lá vem o Funes borgesiano... Dele, curiosamente, nunca me esqueço: sei de cor o lugar na estante, o espaço ocupado pelo livro, a página exacta em que começa... 

"Funes ou a memória" faz parte de Ficções.
In Obras Completas de Jorge Luis Borges. vol. I,
ed. Teorema, pp. 503-509.

Uma dessas coisas que me soube bem recordar no passado fim-de-semana, quando o M. fez 18 meses, foi a descoberta do que lhe ofereci quando ele fez um mês: Pó de Estrelas, do Jorge Sousa Braga, com ilustrações da Cristina Valadas (ed. Assírio & Alvim). Apercebi-me de que ofereci este presente de primeiro mês à estrela maior da minha vida por causa da dedicatória. Voltei a mostrar-lhe o livro. Li-lhe alguns poemas. O M. ri-se imenso, às vezes às gargalhadas, quando lhe leio poesia. Não sei se será do ritmo. Provavelmente. Há qualquer coisa - já me dizia o Manuel António Pina - que o infans, aquele que não fala, tem de coincidente com a música, com essa música inicial que é também batimento cardíaco, coincidência com a vida, com o mundo. (Note-se que não falei em realidade; falei em vida, em mundo.) O Jorge Sousa Braga conhece esse ritmo, inicial e puro, escreve colado a ele, auscultando-o. Não sei se já perceberam que este é o poeta que sabe a "Receita para fazer uma estrela". E que a partilha, sem segredos. 




É também este o poeta que, na sua página do Facebook, lamenta o facto de as estrelas-do-mar estarem a morrer na costa norte-americana. Notícias a quem ninguém dá importância, receitas que todos pensam impossíveis de executar, coisas tão pequenas que já não espantam os homens (só "alguns gostam de poesia" e o Sousa Braga gosta disso e da Szymborska...), coisas tão incomensuráveis e evidentes quanto uma origem - há de tudo isto na obra de Sousa Braga. Por isso, compreendo o que me levou a oferecer ao M., no seu primeiro mês de vida, este livro. O M. é a minha coisa lenta em forma de espanto, para regressar a um poema incluído n'As Coisas (ed. Abysmo).



Aos 18 meses, ofereci ao M. um outro livro: O Meu Avô, da Catarina Sobral (ed. Orfeu Negro; col. Orfeu Mini). 




Sobre o meu Avô escreverei aqui um dia. O meu Avô é talvez o principal responsável por eu fazer parte daqueles "alguns [que] gostam de poesia". E por eu pertencer ainda à infância. E por eu me (querer) espantar até ao fim da vida. Dele ouvi todas as histórias que me importam. E sobre ele escrevi muitas das minhas histórias. Uma delas assumirá em breve a forma de um livro, ilustrado pelo João Fazenda (viva!) e editado pela Arranha-Céus: Torre P, 6º B. Por enquanto, a Torre P é ainda um minúsculo T1 dentro do meu computador:




Ora, o Avô do livro da Catarina Sobral não é um Avô muito diferente do meu. É certo que são avôs com ocupações diferentes: o Avô do livro da Catarina "esquece-se do tempo enquanto cultiva o jardim"; o meu Avô esquecia-se do tempo enquanto jogava palavras cruzadas. 




E, no entanto, têm imensas coisas em comum. Por exemplo:



Sendo certo que:



O M. adorou o livro. Os desenhos, é evidente. 



Sweat-shirt H&M.


Ou talvez intua que aquele Avô pode ser também o dele, o Avô X., por quem tem uma enorme paixão. Bom, bom é saber que ele vai poder pronunciar, pela vida fora, como eu e como a Catarina Sobral, estas palavras-pós-de-estrelas: "o meu Avô". PIM!

2 comentários:

  1. Não sei a partir de quando é que comecei a adorar estes livros... Infantis, cheios de boas ideias e de desenhos com estilo. Se calhar sempre gostei mas precisei também de um M. para ter uma desculpa para os comprar e ler.
    A Catarina está em grande! e é bem merecido!

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